PALAVRAS CRUZADAS

                  O marido pescava enquanto a senhora ficava sentada embaixo do guarda-sol,
fazendo palavras cruzadas. Ele, um senhor já de uma certa idade, robusto, com o abdomen  sensivelmente acentuado, cara arredondada, bochechas vermelhas, lembrando
os bons tomadores de vinho. Usava um chapeu de abas voltadas para baixo, quem sabe para se defender dos raios do sol, ou para emprestar um certo ar de elegancia.
              Ela, aparentando a mesma idade do marido, do mesmo modo avolumada, com um chapeu bem maior, esses que as senhoras usam na praia, para defender a pele das
agressões solares ( dizem que o sol envelhece a pele,  é tudo que elas não querem - parecerem velhas ). Labios pintados de vermelho para contrastar com as bochechas da
mesma cor, mas sem terem sido pintadas. Esparrada na cadeira, embaixo do seu guarda-sol, indolente, com ar distante, dando a impressão que não via seu marido à sua frente. Talvez olhasse na sua direçã,o mas o foco não era ele. Olhar que se espicha, se alonga e vai para longe, para um outro cenario, para um outro tempo.
             Parecia triste. Seria tristeza ou esse desconforto de alma quando chega o tempo em que não mais o que fazer, em que os filhos se foram, e a pessoa fica  entregue a ela mesma, olhando num espelho vazio, para um silencio que doi , porque  ecoa fundo ?  
  Tinha na mão um desses livretos de palavras cruzadas, mas não demonstrava interesse
em achar sinonimos pala preencher a grade em branco.

                       Quando não há mais o que fazer, dizem, vem a depressão, um desanimo estranho, que bem poderia se chamar de tristeza. Enquanto havia os filhos, tantas tarefas, preocupações de toda ordem, funcionaram como verdadeiras distrações,  para evitar olhar para si, olhar para dentro, para aquelas exigencias internas tão importantes de serem atendidas.  Mas chega o tempo em que se faz urgente olhar para elas. A vida que não foi vivida, sequestrada por tantos condicionamentos ou tantas outras urgencias.

                  A agua quer fluir, mas as tubulações estão obstruidas pela ferrugem e por tanto entulho acumulado por tanto tempo. Caminhos que não são visitados com frequencia, acabam sendo tomados pelos arbustos e pelo capim que cresce desordenado.

                  Tanta coisa ficou para tras para ser vivido, que se perdeu de todo o jeito para
reatar caminhos não percorridos. O mapa foi perdido e a bussula enguiçou.
Há tantas portas que não foram abertas, as chaves perdidas, aposentos com teias, muito
pó, e quanta desordem. Igual filme de terror. E um frio gelado correndo pela coluna, como se o sangue de repente parasse de correr.

           Tempos confusos quando se olha para um tempo que não foi vivido, quando se olha para uma vida que foi esquecida de ser vivida.

           Então chega o tempo de se fazer palavras cruzadas, na tentativa de fazer o que não se fez  num outro tempo. Ou, como dizem, para não  ficar caduco.  A pessoa faz palavras cruzadas e assim evita ficar caduco....  Evita o Alzheimer, o Parkinson, o cancer, as artrites, artroses e entortamentos de toda ordem ( consegue ouvir a gargalhada barulhenta do amigo Ghi Belique ? ).

              Como seria bom, se fosse facil assim para se resolver tamanho infortunio !
Aprender sobre sinonimos, palavras relacionadas, abreviaturas, coisas do genero, tem, na verdade, muito pouco a ver ( se é que tem ), com arejamento de espirito,  lucidez,  consciencia,  vida.
                                       A alma sequestrada, não será libertada do seu cativeiro de um modo tão ingenua, e quem sabe, até inconsequente.

                    Quando retornei da caminhada, o senhor de abdomen volumoso, bochechas  redondas e chapeuchinho de abas caidas, ainda estava aí, de pé, no seu posto, na esperança de fingar um papa-terra.
A senhora, contudo, havia cochilado, chapeu caido sobre o rosto, e o livreto de palavras cruzadas sobre o seu colo.
                                                Por onde será que estaria andando ?