sábado, 30 de março de 2013

HUMILDADE COMO INSTRUMENTO DE FAZ DE CONTA



                  Passou correndo, dizendo que tinha pressa. Na sua passagem entregou-me um escrito, e, sem olhar para tras, levantou
o braço esquerdo em abano, como quem se despede,  sumindo por entre a multidão.
Ghi Belique é imprevisivel, talvez venha dai sua esquisitice.
Gosto dele. Há sempre muita graça e franqueza nas suas palavras sem, no entanto, tornar-se insolente. Tem sabedoria,
 nem por isso faz-se barulhento.

Vou tão somente transcrever o conteudo do seu manuscrito, que entregou-me, correndo, sem tempo para explicações.

- " Viu o lava-pés do homem ?  Maninho, fiquei comovido ! 
Já deu-se conta que a humildade tambem pode ser de mentirinha, um faz de conta, simples cena  teatral ?
E aquele que faz da humildade uma pantomina, em que termos iremos conceituá-lo ? Voce sabe ?

O alarido e alvoroço tem essa função. Dissimular a 
hipocrisia. Pois a verdadeira humildade não necessita da ostentação pomposa do espalhafato dos clarins ou do
badalar dos sinos barulhentos. Porque fogos de artificio para anunciar a sobriedade e a modestia ? O espetaculo sonoro não passa
de mera recração.

O humilde, na sua humildade, reza de um modo que ninguem tem
conhecimento que é homem de oração. Por onde passa, não faz-se notar. Não levanta poeira. Faz muito, sem, no entanto, glorificar-se. Não faz da simulação sua ideologia de vida. Tem atitude. Busca na ação a definição da sua vida. 

Viu quando as gotinhas da agua santa cairam sobre o pé do desafortunado detento ?  E quando o Santo-Homem baixou-se para beijá-lo, ouviu o retumbante OH de comoção geral da massa, igual as galerias gritando olé pelo gol espetacular da vitoria ? Maninho,
aquilo foi demais !
 Imaginei, nesse instante, que o frenesi da fé, não é mais que fanatismo desvairado em forma de
histeria coletiva. Ou enganei-me na minha constatação ?
( em tempo - o Santo-Homem só é santo porque existem catolicos.
      Nada mais que força de expressão. )

Não é, por ventura, dessa forma que nascem os santos, toda desfaçatez e cinismo humanos, que nos enche a todos de nauseas,
com um sentimento de velhacaria e falsidade ?

Pobre cristandade que necessita de teatralizações burlescas para confirmar sua fé e devoção ante o que existe de mais sagrado e verdadeiro no coração de cada ser humano. Não fosse o fanatismo, tal pantomina seria de todo improvavel. 

O objetivo pragmatico, baseado na eficiencia e utilidade, que visa
a mudança do padrão de consciencia, capacidade de utilização do verdadeiro potencial humano, gerando comportamento, atitude e vivencia, desvirtuou-se, fazendo do ritual e da
cerimonia substitutivos para a ação.

A arte da maquiagem é incessantemente aperfeiçoada  com estilo
e colorido, pois sem ela os horrores da realidade tornariam ainda
mais deprimente a vida. 
O mundo das mascaras tem sua utilidade.

Na tentativa de dar alivio a tanto infortunio e sofrimento, há muitas formas do individuo vir a drogar-se. Mas ao inves da paz, o que  encontrou foi  incoerencia e  insanidade. Perdeu o
corpo, e sente-se perdido. Perdeu tambem a consciencia e com ela, o significado da vida. 
Um pouco de botox não daria jeito ? Afinal, não tem botox na
cara, no peito, na bunda, e um pouquinho disso na alma, não seria tambem de utilidade para sair do artificialismo idiota das aparencias,  da patetice dos auto-enganos, e olhar para a vida, dar-lhe boas vindas, e viver pelo que vale a pena a vida de ser vivida ?

Os espetaculos circences divertem e emocionam, geralmente,
enquanto ainda formos criança. Depois, a gente cresce e aquilo
tudo perde a graça... ou não.  Afinal, nem sempre os anos fazem com que se deixe de ser infantil.

A humildade que explora, transforma a farsa em altruismo. O engodo levado a status do que é verdadeiro e salvador.
A verdade é sempre humilde. Não é ostensiva, tampouco 
barulhenta. A mentira é competitiva. Necessita da propaganda.
A verdade é aquilo que funciona. Caso não funcione, deixa de ser
verdadeiro.
A mentira precisa convencer. É por isso que necessita do palco.

A vida mediocre a que foi reduzido o ser humano - sem sobriedade,
audacia, ação e inteligencia, o resgate se tornará de todo impossivel. 

Viver exige bem mais que a simples encenação recreativa. Apreciar
a vida de longe, sentado em camarote confortavel como simples
espectador.
Quando o recreio termina, é hora de voltar para a sala. Nos
divertimos bastante, rimos muito, nos emocionamos e a representação foi espetacular.

A bem da verdade, compreendo tambem que sem a farsa e a
mentira a massa não sentir-se-ia à vontade. Batem palma sem ter
consciencia que estão aplaudindo sua propria desgraça. A enganação tem esse proposito. Sem a ignorancia e a alienação, qual seria o destino dos politicos, dos sacerdotes e dos poderosos ? 

E a farsa tem suas artimanhas  de tapeação. Está aí a humildade
faz-de-conta como uma das mais efetivas e apropriadas. E, para 
transformá-la em serventia, em dividendos, qualquer espetaculo ordinario torna-se de extraordinaria utilidade, nem que para tanto seja necessario beijar os pés de um pobre infeliz sentenciado.

Humildade genuina, não te parece ?  Maninho, nem aqui, nem na casa do ca...... peta.  Porra!

Se cuide e passe bem. " 

  






  
     

sábado, 23 de março de 2013

O GAIATO E AS SENHORAS GORDAS


             Aprendemos a ver o mundo atraves de uma interpretação. 
Interpretamos, ou melhor, compreendemos e julgamos o que vemos em função de como fomos treinados para ver. Olhamos para as coisas tendo um filtro, como oculos, diante de nossos olhos, onde a percepção é filtrada, e, em consequencia, as imagens percebidas, refletindo a condição da qualidade do filtro.

Nos acostumamos a ver da forma como vemos. E nos incapacitamos de dar credito que outras paisagens existam, capazes de passar diante nossas janelas, alem daquelas a que nos acostumamos observar. Concebemos o mundo dentro da perspectiva do discernimento limitado do nosso ponto de vista pessoal. E tudo quanto não se ajustar a essa prerrogativa, será prontamente contestado e, da mesma forma, rejeitado, por confrontar as premissas dentro das quais percebemos e julgamos o mundo. 

Nascem assim a critica, a intolencia e a forma preconceituosa de
olhar para o mundo. Nascem as diferenças, as divisões, e, como corolario, as perseguições, a intolencia e a violencia. 
"Quem não pensa como penso, é contra, é inimigo, tendo,
portanto, que ser eliminado". Não é esse o aforisma que determina a ordem (desordem) da convivencia (desconvivencia) humana, 
seja a nivel pessoal, ou de grupo, clãs, ou mesmo nações ?

Quando as diferenças da diversidade não forem mais fonte de
perturbação do espirito, apesar de ainda permanecerem aí, não será mais a vida como sempre foi, pois terá alcançado um nivel de qualificação inimaginavel, quando comparada dentro da perspectiva
das limitações do ponto de vista pessoal.

Nossos olhos não estão livres ou desimpedidos para olhar cenarios
que não estejam à vista e do conhecimento do nosso ponto de observação. Panoramas conhecidos relacionam-se com segurança e proteção. Por isso apegamo-nos às mesmices do que nos é familiar, mapas, cujos caminhos se tornaram habituais. 
Apesar de sempre olharmos pela mesma fresta minuscula,  contemplando o mesmo mundinho insosso, feito de tedio, 
monotonia, cansativo, é assim, porem, que nos viciamos a olhar, e,
de certa forma, tal estrategia acaba tornando-se apropriada.

Sentimo-nos seguros tal qual o ratinho dentro da sua toca de proteção.
Não abrimos mão da nossa noção de realidade, do espaço diminuto onde nos escondemos, das nossas certezas vinculadas a crenças arcaicas, há muito já superadas. A vida será então vivida como consequencia dessas concepções restritivas, confusas e limitantes. 

A medida e a qualidade da vivencia que cada qual é capaz de viver, está na dependencia da quantidade e amplitude das aberturas atraves das quais olha-se para o  mundo. O limite não é dado pela paisagem, mas pelo limite do campo de visão. Sem antolhos o
mundo torna-se mais amplo e deslumbrante.

Dessa forma, as coisas não mudam, permanecem sempre as mesmas, assim como são. Quando mudamos, no entanto, a disposição do olhar, as veremos de uma forma diversa, pois a modificação interna determina sempre uma mudança de perspectiva externa.

 Terá essa noção quando ler aquele livro novamente que tanto gostou. Irá assimilar conteudos dos quais não deu-se conta da primeira vez que o leu. O livro não mudou. O conteudo permanece
o mesmo. Quando mudamos, no entanto, as coisas parecem mudar junto. Mas, as coisas não mudam. O que muda, é a nossa forma  de olhar. A nossa modificação interna traz consigo um mundo novo, um mundo que, entretanto, sempre esteve aí. Não percebido.
A realidade externa concilia-se sempre com padrões internos. O que vemos fora, não é outra coisa que a projeção dos conceitos
elaborados internamente, atraves dos quais concebemos a vida. 
Assim, aquilo que é, deixa de ser o que é para adequar-se àquilo
que achamos deveria ser. Aquilo que vemos, afinal,
 o que é ? 

 Aproximano-nos cada vez mais da realidade dos fatos, à medida que formos capazes de nos livrarmos dos filtros das crenças e convicções atraves das quais normalmente julgamos o mundo.
....................xxx..........xxx.......

Nesse momento, gostaria de elucidar, com um fato vivencial, o assunto aqui elaborado. O relato é surpreendente pela violencia psicologica que transmite, pelo atrevimento, petulancia e malcriação, sem deixar de refletir, contudo, a motivação basica  (assunto dessa pauta)  que deu origem ao fato trapalhão. 

Estava a poucos passos de distancia das duas senhoras que andavam de braço dado, apoiando-se uma na outra com o peso de seus corpos, como se escorando para manterem-se em equilibrio.
Era ainda cedinho, e o calor a essa hora não se fazia sentir ainda.
Pela luminosidade do momento, o dia prometia ser de calor intenso.
Não havia muita gente à beira mar. Poucos guarda-sois abertos.Os
pescadores, esses sim, já estavam na sua lida matutina. E alguns
caminhantes aproveitando o momento da frescura da manhã.

As mulheres, de meia estatura, de meia idade, eram gordas, de obesidade acentuada. Não havia nelas a leveza e graça caracteristica de certas pessoas corpulentas.
Expressão dolorosa no rosto, como se aquela caminhada fosse 
coisa alem de suas possibilidades, e parecia estarem ali por
alguma obrigação, seguindo, quem sabe, alguma recomendação
 profissional.
Elas não tinham idade tão avançada, nem seus
corpos tão fragilizados para parecerem tão decrepitas e arruinadas.

Tudo nelas era triste. Seu andar arrastado, a falta de energia,
o cheiro, a postura, a apatia.
 Será que alguem já nasce com tal proposito ou sina, ou a pessoa transforma-se nisso ao longo da jornada ? Seria, porventura, vitima de forças invenciveis, indefesa frente aos ataques impiedosos da vida ? Quando a disposição interna 
fragiliza, o corpo sempre esmorece. Frente a um estado de animo esbagaçado, a debilidade manifesta no que existe de mais deprimente no ser humano. De igual forma, a graciosidade do
espirito, seja na obesidade ou num corpo alinhado, o requinte e
a leveza evidenciam-se à primeira vista. São chamativos. E contagiam.

A elegancia não é, necessariamente, uma singularidade corporal, ou atributo de medidas externas, mas, tão somente, um efeito da suavidade do espirito.

Enquanto seguia em frente, à pouca distancia das duas, perdido em
devaneios mentais, infuenciado pela observação dos fatos, surge do nada, subitamente, um gaiato, que passa apressado, postando-se à frente das senhoras, dando inicio a um discurso patetico, ultrajante,  inconcebivel, em função do tom e do conteudo do desairoso linguajar, motivado, tão somente, pelo porte fisico delas. 

 - " Isso é vergonhoso !" Vociferou, descontrolado, tomado pelo desprezo. E continuou, possuido pela indignação.           
 - " Verdadeira poluição para os olhos. Como não podem dar-se conta disso ? Atentado 
contra o bem estar e  bom humor das pessoas. Como pode isso ser permitido?  Perturba as pessoas olhar para tanto relaxamento e feiura. Deveriam ficar em casa, escondidas, e não aparecer em publico, emporcalhando o mundo com tanto mau gosto".

 Parou de falar, como se quisesse avaliar o efeito das suas palavras. Por fim, lançou-lhes um ultimo olhar de desdem, tomado ainda pela soberba, e saiu correndo da mesma forma como havia se apresentado. 

Uau !.... Meu Deus ! Meneei a cabeça de um lado para o outro para apenas certificar-me do que acabara de ouvir.  Isso que ouvi, foi mesmo isso que ouvi ?
Aconteceu de uma forma tão surpreendente e fora de qualquer cabimento, que senti um frio no estomago. A boca entreabriu-se,
 o queixo caiu. Não conseguia respirar.
Apesar de estar aí como simples testemunha casual, mesmo assim, o impacto não foi menos que simplesmente chocante. Era quase como se aquilo estivesse acontecendo comigo.

 Olhei para elas. Benzeram-se simultaneamente, 
enquanto uma delas desmoronou, indo para o solo. Estava inconsciente. Respirava com dificuldade, sacudindo o corpo como se estivesse em crise
convulsiva.
 A outra gritava improperios, em forma de defesa
contra o desastrado agressor, que, já distante, não deu a minima aos
protestos da enfurecida senhora .

Sai correndo, assim que me refiz do impacto, ajoelhando-me ao lado da desmaiada, pedindo-lhe,
aos gritos, que respirasse fundo. Dei-lhe tapinhas de leve no
rosto, tentando reanimar e trazê-la de volta para a realidade. 

Respire fundo, minha senhora. Respire. Respire. Era a unica
coisa que ocorreu-me fazer naquele momento espantoso
e inconcebivel. Enquanto isso, a outra continuava na sua furia,
aos berros, tentando, talvez, chamar atenção de algum passante, que pudesse fazer justiça contra o desbocado infeliz.

A desfalecida foi retornando às suas faculdades normais, à medida
que a estimulava a respirar cada vez mais. Apoiei a mão direita embaixo de sua cabeça, como um pequeno travesseiro, explicando-lhe que tudo estava bem. Quis saber o que tinha acontecido (mana,
que foi que aconteceu ? )
Pedi que se acalmasse, e tentei erguer sua cabeça para a posição sentada.
Minha senhora, vamos sentar ? Irá sentir-se melhor.
Nesse instante olhou-me com indignação, falando com azedume.
 - " Sentar ?  Como vou sentar se não há cadeira alguma para
sentar ?  Vá tratar de achar uma cadeira
 onde possa sentar !"

Achei que não tivesse ouvido, novamente, mais uma vez, o que acabara de ouvr, mas ela reforçou, de
imediato, sua petulante exigencia : rapido, rapido, rapaz, uma cadeira !

Levantei-me, lentamente. Nossos olhares encontraram-se. Olhar estanho, talvez sem sentido, de descredito, ou de assombro. Fiz sinal com a cabeça, e ergui-me lentamente, pois as pernas estavam dormentes, doloridas, devido a posição incomoda em que permaneci o tempo todo tentando socorrê-la. 
Por fim, já de pé, espreguiçei-me, colocando as mãos atras da cabeça, e segui em frente, retomando, sem pressa alguma, a caminhada matinal,  tão estranha e absurdamente interrompida.
 Ouvi o canto de uma gaivota e o ruido das ondas morrendo na areia fofa. A luminosidade era nesse momento já mais intensa. O dia, sem duvida, estava maravilhoso.

Bem ao longe, quase a perder de vista, o gaiato tambem
prosseguia em sua jornada, como numa cruzada implacavel,  à procura, quem sabe, de outras circunstancias, onde pudesse fazer justiça aos seus pontos de vista pessoais, expondo sua plataforma de como o mundo, as
pessoas e tudo o mais deveria ser. 

PS   A cadeira da senhora ?  Pois é...  sem maldade alguma, se quiser, leva uma para ela. Talvez esteja ainda esperando !
Eu, da minha parte, acabei esquecendo-me de todo...




  




    




quarta-feira, 13 de março de 2013

CREATININA VIRA REFRÃO DE CENA SURREAL



        Qual seria o termo exato, ou a expressão adequada que pudesse traduzir, ou dar ao menos uma ideia aproximada, que conseguisse descrever o episodio no qual vi-me envolvido, de um modo muito estranho e ao mesmo tempo de todo involuntario ?

Talvez a forma mais precisa e esclarecedora seja a da imagem que
vem à mente quando falamos de uma situação "insolita". O termo
é definido pelo moderno dicionario da lingua portuguesa como algo não habitual, algo estranho, que é contrario ao uso, às regras, aos habitos, algo extraordinario, incrivel.

Pois bem, foi exatamente assim que percebi-me naquele encontro maluco. Aquilo sugeria bem mais uma cena surreal do mundo onirico e fantasioso das imagens imprevisiveis dos sonhos, que um acontecimento provavel no mundo real das coisas de todos os dias.

Aquilo não poderia ser possivel ! Cena elaborada pela total irreverencia e ousadia, sem ser no entanto ofensiva, ou carregada pela depreciação maldosa - e à presença dos demais, à beira mar, numa linda manhã de verão.
Simplesmente, não havia condições racionais para que pudesse dar
credito ao que meus ouvidos escutavam. Tinha que haver algum engano. Ou, talvez, estivesse em algum transe hipnotico, à deriva da realidade, ou então, quem sabe, estivesse realmente num sonho, sem dar-me conta de estar alucinando. E, pior, a duvida persiste ainda até esse momento ! 

Era a caminhada matinal de todos os dias. O ceu estava   azul, totalmente azul como se fosse uma tela pintada dentro de uma tonalidade apenas. A luminosidade transferia um sentimento de bem estar e leveza de espirito, tão proprio desses dias em que a  natureza parece festiva,  um convite para um momento de celebração, de contentamento, como se não houvesse amanhã.
 ( não é nesses raros momento, que temos a ideia, ao menos vaga,
 o que seja liberdade e o verdadeira sentido da vida ? )

   A brisa suave tornava o calor, que já se fazia sentir naquele momento, muito agradavel. O mar estava calmo, e a agua morna, convidativa, para um mergulho estimulante. 

Estava totalmente envolvido pelo cenario deslumbrante das circunstancias, pela energia leve e acolhedora da situação, que, quando dei pela minha pessoa, inexplicavel e repentinamente, vi-me envolvido, como se estivesse num palco simulado, representando uma cena já anteriormente ensaiada, frente à frente com aquelas pessoas, surgidas de onde ?, como por encanto,  tomando-me o centro daquela exibição impossivel.

Bem mais que a surpresa e o espanto, o mais surpreendente foi a maneira como me vi dominado pelo falatorio, e a forma como representavam, cada qual, o seu personagem.
Sem querer, fui o protagonista da comica, divertida e inusitada encenação, apesar de representar o papel de coadjuvante, pois a função toda corria, quase de todo, por conta daqueles atores improvisados, excentricos mas, sem duvida, adoraveis.

 -   Olalá, vejam só o que temos aqui. Um moço elegante e cheio de cuidados, gritou, encantada, assim que deu por mim à sua frente.
Aproximou-se mais, chegando mais perto, como se quizesse examinar-me com mais cuidado. Olhou-me de cima abaixo, de relance, talvez apenas para confirmar sua impressão inicial, para concluir, por fim, o seu parecer. Afastou-se um pouco, rindo ruidosamente, sem importar-se com as demais pessoas ali
presentes. O espetaculo era dela e estava satisfeita com sua atuação. E anunciou então em alto e bom som : elegante mesmo,
com certeza! 
Parecia satisfeita, muito tranquila e sinceramente simpatica. Parecia 
não querer dar espetaculo, apesar de ter armado um verdadeiro circo, sem lona, mas com picadeiro, à ceu aberto.

( não consigo, por mais que tente relembrar dos fatos, encontrar alguma logica, algo que fosse dar sentido e coerencia para que tal encontro pudesse ter sido possivel; estando, alem disso, nesse momento, ainda cheio de duvidas quanto ter
 realmente acontecido, pelo inusitado e impensavel da situação ).

 Era uma mulher volumosa, rechonchuda, de porte
realmente notavel em função da sua destacada obesidade. Ao falar ou rir, seu corpo balançava, ondulante, como se fosse espalhar-se em função da sua consistencia pastosa e flacidez geral. Parecia não haver solidez ou segurança na sua estrutura movediça e fluida. E aquilo bem que poderia desmanchar a qualquer movimento mais brusco ou intenso.

Grande dificuldade para mover-se, passo curto e lento, cadenciado, entretanto agil nas apreciações e julgamentos, que de imediato transformava-se em em loquacidade ruidosa e tiradas espirituosas. Seu rosto irradiava jovialidade e descontração, marca tão peculiar das pessoas avantajadas, que comunicam auto-suficiencia e genuina animação. Parecia feliz, em paz consigo mesma, como quem não necessita de nada para sentir-se bem. Este momento lhe parecia suficiente, transformando-o em seu total beneficio.
            Percebi, nesse instante, que não estava só. Enquanto
afastava-se uns passos, dirigiu-se para onde estavam mais duas pessoas, de porte semelhante, igualmente ondulantes, devidamente espaçosas, flutuando em meio a tanta gordura. Parou a meio caminho dos outros ( uma mulher e um 
jovem ) e anunciou, gargalhando : Mana Gorda, o moço é elegante.
( acentuou,  esticando o "é" para dar enfase ao "elegante" ).  Por fim, rematou : com certeza cuida bem da sua creatinina.

Nesse instante, em que pronunciou a palavra creatinina, presenciei
o que jamais imaginara fosse possivel presenciar.
A Mana Gorda e seu filho Zaka ( imaginei-o filho dela, pois se pareciam ),  apoderaram-se dos seus tambores e a Gorda
( Catalina ) com seu pandeiro, e deram inicio a um alvoroço inconcebivel, em função das circunstancias. A sonoridade tinha ares de espetaculo. Ritmado, alegre, na cadencia da batida atraente dos bumbos, onde o refrão da cantoria era a palavra creatinina, com destaque e enfase à silaba "ni".
No refrão havia harmonia. Era melodioso. Só tinha alguns compassos que eram repetidos sem cessar.
Repetiam a palavra, enquanto batiam os tambores e o pandeiro era
chocalhado. A sonorização era contagiante, mais ainda pela 
descontração e espontaneidade do trio repolhudo. Suas bochechas  balançavam ao ritmo festivo e fascinante do refrão "creati NI na", repetido em cadencia, o que produzia mais animação e entusiasmo. A ondulação de seus corpos tambem parecia emitir sonoridade, tal  a graça do ondulado, das bainhas de gordura chacoalhando
por todos os lados.
Espetaculo inarravel, insolito e de todo inexplicavel.

Aos poucos, a turma, em volta, entrou no ar festivo e animado, acompanhando a batucada alegre, sob o compasso da banda improvisada. 
Quando a batucada serenava, Catalina, a Gorda,  dava o tom do enredo, com seu palavreado eloquente, animada, e ao mesmo tempo provocativa.
Sua disposição evocava alegria. Era divertida, irradiando simpatia.

" - Moço, aproveite a vida ! Menos sacrificios ! Porque cuidar-se
tanto ? Morre do mesmo jeito. Tambem acha que o gordo morre antes ?  Respondeu por mim :  "não sei se é verdade, mas com toda certeza vive melhor, sem tanto suplicio e tanta renuncia".

Falava sem parar, como se fosse discurso preparado. "Voce se cuida para ser feliz. Nós somos felizes sem nos cuidarmos tanto, ou privação de tanta coisa. Não quer que o colesterol suba, que a barriguinha apareça, ou que o peso dispare. Já se deu conta de quanta coisa deixa de lado em nome do deprimente lugar-comum que chama vida saudavel ? Nós somos alegres, brincalhões, divertidos, não vê ? Veja o Zaka com sua enormidade. Não está de bem com a vida ? Acha que seria mais animado e feliz com tantos quilinhos a menos ? Acha que se importa com seus excessivos pesos alem da medida ?
Não temos medo de sermos felizes, apesar de não jogarmos conforme as regras. Nem por isso nos sentimos menos, nem tampouco carregamos culpa pelo que somos. Voce, ao contrario, figura elegante de semblante triste, apesar de bem fininho, parece amargurado. Não parece ser contraditorio ? Busca o alinho da forma, mas por dentro parece descuidado ".

Não sabia o que responder e simplesmente ri. Ri em função do nervoso e pela falta de saida, e a cabeça não cooperando em absoluto para que pudesse emitir qualquer comentario que pudesse  aliviar o desconforto e o constrangimento no qual estava envolto.  Ao mesmo tempo, achei lindo seu toque de ironia, satisfação e franqueza.

A apologia ao excesso, descontrole e insensatez, produziu uma sensação de aperto no estomago, e uma especie de agitação na cabeça. Meus pensamentos pareciam distorcidos, desconexos, como se meu corpo estivesse aí, mas vivendo, a nivel de racionalidade, uma outra realidade. 
Uma janela começou a abrir-se lentamente, por onde era possivel
divisar paisagens até então não contempladas. 
Geralmente olhamos para as coisas porque estamos acostumados a olhar para elas como sempre fazemos. Olhamos para elas, talvez apenas para certificar-se de que há alguma coisa ali. Não haveria
mais, entretanto, para ser visto alem daquilo que sempre vemos, ou
 acreditamos ?  E mais, porque supor que o ponto de vista pessoal
é a unica visão possivel ?

Estava confuso, perplexo e sem ação.
Percebi minha ansiedade. Estava como que sob o efeito de um encantamento, pois perdi a capacidade de reagir, ou defender-me. Aquilo era de todo incompreensivel. A realidade deles, entretanto, condizia com que La Gorda proclamava. Para dizer pouco, eram, sem duvida, pessoas alegres, agradaveis, comprometidas com a satisfação e o prazer. Vi neles a felicidade inocente dos que  necessitam de nada, ou de muito pouco, para vibrarem satisfeitos
e serenamente gratos com a vida. Representavam a personificação  da verdadeira felicidade, satisfação e abundancia. Sem duvida, aquilo encheu-me de emoção e ternura. Amei sua maneira de serem alegres, soltos e verdadeiros.

  - " O seu colesterol normal e alguns quilinhos a menos, ajudará, por ventura, as pessoas tornarem-se mais alegres, tranquilas, pessoas melhores ?  Já que se cuida tanto, moço elegante de figura triste, não percebe que não está mais animado, leve e fluido, apesar da aparencia apresentavel, devido aos tantos cuidados ?  
Pode ser leve e fluido por fora.  Por dentro é gordo e dasajeitado,
 mais que a gente é por fora, isso, exatamente, que rejeitam na
gente, na gente gorda. Somos discriminados e nos subestimam porque não conseguem compreender que, apesar de tanto excesso e aparente negligencia, ainda assim somos o que não conseguem com seu apuro e tantos cuidados. Será que não somos o que rejeitam em si mesmos, visto atraves de nós ? O rejeitado em si sempre perturba quando visto do lado de fora. Não é assim que falam os
entendidos no assunto ? Voces se cuidam por fora como simples disfarce pelo desarrumado por dentro. Talvez esteja exagerando. Se for o caso, mil perdões ". 

Mesmo assim deu continuidade à sua argumentação.
 - " Dizem que necessitamos de ajuda, que  nossa condição é doentia.  Quem está, no entanto, mais necessitado de ajuda ? E anunciou em tom estrepitoso : nós somos o paradoxo de tudo que parece correto e incontestavel, mas não é."
 E ria-se com satisfação incontida, gestos soltos, vibrantes, balançando ancas, pança e tudo o mais, no seu mar de gordura animada.

Seu senso teatral, seu humor e sua postura gentil, passava-me a estranha sensação de tratar-se de uma pessoa leve, suave e afavel, apesar do seu comunicado impactante e irreverente. Não pareceu-me, contudo, arrogante, insolente, ou com ares de cinismo. Representava seu papel com elegancia, desenvoltura e leveza. Estava feliz.
 Não era a mesma janela pela qual eu olhava a vida. Estava  descrevendo-me as paisagens vistas atraves da sua janela. A forma pela qual vivia a sua vida.
 E eu amei, com reverencia, aquela gorducha !

 -  "Tambem tenho problemas, mas não do mesmo jeito que voce. 
Superei expectativas, e isso me aliviou. Não espero nada. Não vivo pelo amanhã.
É uma pena, pois não consigo fazer todas as coisas que gostaria, mas isso não é um problema, é só uma pena. Não me lamento, nem me queixo. Nada me choca, nem me frustra. 
Nós gordos somos, mais ou menos, como o feio. O feio está conformado. Afinal, é feio, e não irá perder tempo nem energia com sua feiura. Não sofre pela sua figura estranha. Está satisfeito consigo mesmo, vive a vida e o corpo que  papai do ceu lhe deu, sem conflitos, sem carencias, sem queixar-se, de bom humor, e sem necessidade de elogios ou aceitação, como forma de satisfação pessoal. Ele se basta. Por isso é feliz.

 A beleza é incompleta, não percebe?, pois tem de ser aperfeiçoada a cada momento, sempre retocada, corrigida, ajeitada. É por isso
que o bonito, no mais das vezes, é feio, é exigente e carregado de azedume. Não tem mais que sua beleza vazia, beleza sem sentido, nem valor. Não te parece que 
lembra os cuidados dos que buscam a forma perfeita, no entanto desajeitados e feios pelo lado de dentro ? " 

Seu discurso era dado pela eloquencia de quem transmite 
aquilo que vive, tangido pela experiencia pessoal, e não por ponderações filosoficas sem sentido, teorizações futeis  de um conhecimento de segunda mão simplesmente por ouvir dizer. 

 "Um corpo gorducho é um corpo alegre, não reprimido, nem forçado a ter que acomodar-se a algum tipo de modelo, padrão ou esquema. Se olhar com atenção verá que existe na gente uma beleza especial que não encontrará na beleza que se esboça atraves do sacrificio da privação. Não é uma beleza natural. É forçada. Não é espontanea,
tampouco verdadeira. Geralmente nesse tipo de beleza há sempre
algo de mentiroso".

Lá estava eu, apatetado, rodeado por todos que se encontravam nas
proximidades, sem ação, simplesmente incredulo, impossivel aquilo tudo estar acontecendo, numa linda manhã de sol, à beira mar, sob um ceu radiante, como se fosse um dia de festa.
Sem duvida, Catalina, a Gorda, mostrou-me o outro lado da cerca, cenarios até então estranhos para mim. E inaceitaveis.

Voltou novamente a postar-se à minha frente, examinou-me como dar  tempo ao que iria dizer a seguir, com ar de um ator canastrão que exagera o seu desempenho. Piscou o olho, ergueu as sobrancelhas, balançou seu corpo imenso como se quisesse dar realce ao seu comentario.

- "Quer viver mais, por isso se cuida tanto, moço triste, de aspecto elegante. Mas posso dizer que serão apenas mais anos de mortificação e amargura.  Deixa de viver tanta coisa, de experimentar diferenças por causa de tantos senãos. Será mais feliz em função de tudo isso ?"

-  " Quer uma cervejinha ? um pastel ?"
  Abriu um imenso isopor de onde retirou uma cerveja e um imenso pastel engordurado. Dobrou-se de tanto rir e prosseguiu : "em nome da elegancia e da perfeição, castiga o corpo para sentir-se bem. Deixa de lado tanta coisa boa que gostaria de fazer, ou experimentar, mas tem a balança que persegue, pondo culpa, ou o colesterol que assusta.  O que se  leva da vida ? Não leva consigo seu colesterol comportado, nem tampouco leva seu corpo enxuto, ou sua barriguinha afilada. Levamos dessa vida não mais que a alegria que conseguimos viver, 
ou a satisfação que alcançamos sentir. Mais nada ! Acredite !
Os elegantes vivem em função de uma imagem de beleza, que os deixa sem graça e eternamente insatisfeitos. Lá em casa não existe isso de mau humor ".
E gritou bem alto  - "Não é mesmo Mana e Zaka ? "
 Ao que os dois responderam em unissono : completamente.
E por causa do quê, replicava Catalina ?  ( parecendo jogral de
 colegio ) Por causa da creatinina, com certeza - veio a resposta dos dois, em forma de gargalhada ruidosa.
E ao som da palavra creatinina, os tambores rufavam novamente e o pandeiro dançava nas mão gordas e fofas da gorducha Catalina. A animação estava à solta, e o refrão - creati NI na  se fazia ouvir à distancia. A praia toda cantava e dançava como se  estivessem todos possuidos ou hipnotizados pelo feitiço daquela gente maravilhosa. Estavam felizes sob
o batuque e a cantoria dessas figuras desajeitadas, mas sincera e profundamente amaveis, encenando o ritual da verdadeira alegria, do jubilo e da bem-aventurança, baixando, de certa forma, o ceu para a terra, confirmando que a felicidade existe.
Aquilo parecia-me a personificação do impossivel tornado real, da loucura transformada em exultação. Não poderia ser de outra
forma. Eu devia estar num sonho ! Com certeza !

Sai de fininho do meio da confusão formada e segui, em estado
hipnotico, como mentalmente embriagado, minha caminhada matinal.
Ainda ecoava em minha cabeça a voz vibrante da rechonchuda Catalina: "se não fosse por nós, gente gorda, o mundo seria ainda mais triste e deprimente. Somos os profetas da alegria e da descontração. Mesmo assim nos reprimem, condenam e discriminam. Mesmo assim somos mal vistos. Se trocasse  meu "corpinho" pela sua elegancia, que seria de mim ? Ficaria da mesma forma, assim como voce. Elegante mas de aspecto triste. Uma figura afetada, artificial, sem graça.  Mas deixa estar ! Não quer uma cervejinha ?..." Deu-me um tapinha
de leve no ombro e calou-se.

 Ao longe ainda ouvia o rufar dos tambores, o som dos tamborins e pandeiros, e o olé feliz pela
faceirice da abençoada C R E A T I N I N A....









    









quarta-feira, 6 de março de 2013

QUANDO A AUSENCIA NÃO É A EXPRESSÃO DO VAZIO


     
       Sem desfazer-se de tantos enfeites, badulaques e penduricalhos de toda ordem, que não fazem mais que aumentar o peso da bagagem, já incomoda, adicionando apenas mais desconforto e desencanto, à medida que a ambição acentua e a imagem adquirir mais brilho e destaque - sem essa faxina, essa depuração, descartando os superfluos, selecionando o essencial, saneando
radicalmente o mundo dos conceitos - a modificação que todos buscamos para uma vida plena, gratificante e de realização, torna-se de todo inviavel.  

  Com mais ou menos dramaticidade, a verdade é que todos sofremos. E, de uma forma ou outra, buscamos, todos, as salvaguardas da racionalidade
para ficarmos do lado seguro da cerca, onde a paisagem é conhecida e as regras do jogo, familiares.

  Buscamos a segurança dentro dos limites estreitos da razão. Pois desconhecemos de todo outros roteiros, e qualquer outro cenario nos é de todo desconhecido. Desfazer-se desse controle, abrindo  mão da programação racional, dentro da qual elaboram-se os
codigos de segurança e proteção, é a premissa para ter-se acesso às mudanças, atraves das quais a grande modificação possa por fim concretizar-se. Em outras palavras, para não ter que submeter-se 
ao comando austero e inclemente do mestre sofrimento.

  Sem essa mudança, essa reorganização interna, os caminhos de novas possibilidades estarão fechados. " Essa mudança não é uma
mudança de estado de espirito, nem de atitude, nem de ponto de vista; essa mudança implica uma transformação do mundo 
racional".

Essa transformação, no entanto, não visa à destruição do mundo da razão. Não tem o significado de não mais pensarmos ou abrir mão dos planejamentos ou das nossas agendas. Não é isso. Afinal, é esse o nosso mundo. Não podemos renunciar a ele. Necessitamos da mente para estarmos aqui. Necessitamos do pensamento como modelo, como matriz para a elaboração da nossa realidade. Afinal, criamos pensando, não é assim ?

O problema se coloca quando a mente sobrecarrega-se com valores
prescindiveis e superfluos considerados importantes e necessarios.
Agarramo-nos à sua estrategia com a firme convicção de ser a unica
possibilidade dentro da qual a vida possa ser conduzida.

 Arrumamos o mundo de acordo com as regras da racionalidade.
 A mente governa, no entanto é vulneravel. Toda vez que nos deparamos com o imprevisto, a surpresa, a desgraça, o mundo organizado por ela sofre um abalo na sua estrutura, e ela propria se encolhe, e, não raras vezes, se aniquila.
A razão dá o fora, sem perda de tempo, quando os limites estreitos e seguros, onde se ancora, forem rompidos,  A perplexidade
e o desalento nos tomam como vitimas indefesas; e negamo-nos
a olhar que não seja a que nos acostumamos.   

                   Cercamo-nos habilmente de tantos recursos e truques
cuja unica finalidade não é outra que a elaboração de um conceito de auto-avaliação, atraves do qual nos vemos e nos fazemos ver. 
Imagem de identificação no espelho das coisas a que nos 
apegamos. Isto é, as coisas criam uma imagem na qual me reconheço e identifico.
                      Crio um mundo que é identico a essa imagem. Molde
gerador de realidades. Assim, criamos à imagem e semelhança da imagem que construimos frente as coisas que nos identificam.

Surge, a partir dai, o questionamento inevitavel : a realidade estruturada atraves de uma simples imagem, tem ela consistencia ?
É real, ou é apenas um efeito de ilusão de otica, não tendo portanto
existencia verdadeira ? 
Porque o mundo desmorona à toa, esse mundo criado dentro de um conceito racional, quando a imagem não for mais sustentada ? 

Criamos em função de como sentimos. Quando a auto-percepção muda,  essa mudança aniquila a realidade fundamentada nessa percepção. Frente a isso cria-se o impasse : o que diferencia a
ilusão do que é real ? A vida que vivemos é feita da mesma substancia de que são feitos os sonhos, os pesadelos, ou tem
consistencia real, consolidado e fundamentado na solidez ?

Já que a percepção que se tem de si manifesta o mundo dentro do
qual cada um irá experimentar a vida, em conformidade com essa 
concepção, não deixa isso de ser importante ? Ou melhor, vivemos a vida que somos capazes de sentir. A realidade se estrutura dentro do contexto da virtualidade racional. Trazemos para o exterior
nossa configuração interna.

Assim, ter um juizo de valor de si que seja  positivo, sem auto-comiseração, sem culpa, nem constrangimento, não reside aí o poder pessoal de cada um ?  É com esses parametros que
criamos mundos de realidade.

Esse roteiro, elaborado dessa maneira, é benefico enquanto funcionarmos exclusivamente a partir do centro da razão. Pois a visão do mundo, a realidade existencial forma-se dentro desse contexto. Necessitamos do mundo das coisas para aí nos encontrarmos e termos a percepção de ser. O sentimento do "eu"
forma-se e se amplifica pela coisificação da vida, o que, por sua vez, traz mais disso para a vida de cada um. A forma atrai forma.

O sentimento de realização e importancia de si provem das nossas conquistas, trofeus e feitos.
Não é sem motivos que a auto-imagem é assim exigente, despotica e eternamente insatisfeita.
Sua satisfação não consegue ser completa, não importando o quanto
seja rico seu mundo de manifestação.
O ter sem fim, não irá aplacar a sede de conseguir cada vez mais.

Parece paradoxal a agua produzir cada vez mais sede. E o paradoxo
se completa, quando a realização suprema se concretiza na ausencia total da necessidade de sentir-se importante.
Age somente por agir, sem esperar recompensas, sem buscar elementos nos quais se sinta solido e seguro.

Não ter mais que ancorar-se no mundo das coisas para sentir-se
estruturado, informa que a pessoa teve acesso a outros niveis,
mais profundos, onde a razão deixou de ser o protagonista, sem
no entanto ter-se reduzido tanto que tenha sumido de cena.

A mente continua lá, sem no entanto manter-nos refens do seu
dominio. Saneada, faxinada, livre de tantos penduricalhos,
estará à nossa disposição para ser usada, e não mais sermos usados
por ela.
É quando o pensamento se torna realmente criativo. Quando não pensamos mais.

Quando a necessidade de mais e melhor tiver sido finalmente 
extirpada, é que a pessoa terá acesso à consciencia da sua
verdadeira natureza.

Afinal, a ausencia nem sempre é a expressão do vazio.