domingo, 29 de julho de 2012

VOCE AÍ, TEM CERTEZA QUE NÃO FALA SOZINHO ?

a
                A manhã estava fria.  Ao longe ainda se via a neblina que, aos poucos, ia se desfazendo, à medida que o sol ficava mais animado.
                 Apos alguns minutos de caminhada, inspirações profundas do ar fresquinho da manhã, o passo se tornava mais
vigoroso, transformando-se numa sensação agradavel de bem
estar e leveza.
                        Não havia ninguem mais, mas ao dobrar a primeira
esquina, uma mulher de passo lento, movimentava mais os braços,
com gestos nervosos, que propriamente as pernas na sua caminhada
lenta e aparentemente sem proposito, na fria manhã de domingo.
                       Parecia agitada, tomada pela irritação, inquieta na
sua gesticulação com movimentos rapidos fazendo o corpo
se tornar tambem agitado e sem controle.
                                                                         À medida que fui
me aproximando constatei que estava realmente descontrolada,
em furia, os movimentos energicos dos braços em sintomia com
o discurso do seu falatorio. Falava alto como se estivesse desacatando alguem, acusando enraivecidamente, fora de
controle. Cena insolita para uma manhã de domingo em que o sol
ainda era timido, e a nevoa nem tinha de todo se desfeito ainda.
     Ao passar por ela pensei de alguma forma ajudar e a saudei
dizendo "oi, tudo bem ? " Ela parou,  parei tambem. Mesmo tendo parado e estar me olhando, continuava na sua pantomina, gesticulando e falando furiosamente. A impressão era que não
me via. Olhar nebuloso. Mente confusa. Transtornada. 
            "Imagine que ingratidão..." e foi desfiando  seu rosario de
lamentos e queixas,  toda forma de injustiça que julgava estar sendo
submetida sem piedade.
    Discurso inflamado como quem  defende uma causa com toda
força de sua alma, justificando sua revolta e indignação.
       Como estava apenas caminhando, sem interesse algum com
o dramalhão de ninguem, dei meu parecer concordando com ela,
dizendo que estava certa e que tinha razão por estar tão revoltada.
  Concordo com a senhora, tentei concluir. As pessoas são ingratas e não estão nem aí para o sofrimento dos outros.


           Nesse momento se calou , a gesticulação cessou, e a boca
se repuxou levemente para cima, apenas de um lado, como se
fosse a mimica de um sorriso de escarnio, de altivez e menosprezo.
  "Concorda com o que, seu maluco, se nem te falei nada ! ? ..."
"Concorda com o que ?"


     Deu meia-volta e continuou sua marcha, possuida pelo terror
do odio, descontrolada pelo abandono, desamparo e rejeição.
 Enquanto dava os primeiros passos consegui ainda ouvir o seu
xingamento, se referindo agora à minha pessoa. "Parece doido ! Deve ser mais um desses malucos que andam por aí falando sozinhos. Concordar... concordar... ". 


       Depois continuou seu monologo enfurecido que nem ela propria  era capaz de ouvir.
                                                   Diminui meu passo para deixá-la
seguir em frente. Enquanto dobrava a primeira curva, ainda
consegui ver os movimento dos braços fazendo seu discurso
inflamado, perdida nas suas tristes lembranças.
                  Quando a falação, não audivel da cabeça, toma todo o
espaço disponivel internamente, vaza para fora, o discurso
transborda e se faz barulhento. Se torna publico, comunitario, com
plateia e até gritos de olé.
                                          De igual modo que não percebe o falatorio da cabeça, não irá tambem ouvir ou se dar conta
quando a boca fala sem querer.


                                    Já não supos alguma vez que isso aqui não passa de um gigantesco hospicio, povoado por seres malucos,
alienados, esquisitos e desvairados de toda ordem e intensidade ?
Uns falam alto para dentro, que ninguem nota, nem o proprio,
outros tantos se fazem ouvir por todos, salvo por si mesmo.


          Cuidado !   Não fica aí tão confiante na sua lucidez e sanidade mental.
Não é por não sair por aí falando alto enquanto caminha ou 
não faz nada, que possa ser atestado como mental ou psiquicamente
equilibrado.
 Por acaso se dá conta enquanto sua cabeça fala ininterrupta, incessante, continuadamente, sem tregua, dia e noite, a vida toda, e talvez até após virar defunto ?
 Defunto tambem se queixa, não sabia ? Se queixa da vida  que terminou, de não ter vivido, e deixado tanta coisa em aberto para quando tivesse tempo. Como pôde ter passado assim tão
rapido  ? Ninguem me falou nada que  seria desse modo, de 
supetão, sem aviso, me fazendo de trouxa, pouco caso.
 E lá vai se lamentando, como fez tambem em vida, nosso lastimoso desencarnado.
 O tempo que esperou para viver, acabou no caixão enfeitado de flores,  flores que talvez nunca tenha recebido enquanto ainda 
era vivo. Vivo ? Tem certeza ?
    
         O dialogo interno é envolvente, incrivelmente silencioso,
sem ao menos nos darmos conta que esteja acontecendo. É por isso que asfixia aos poucos, lentamente, como uma substancia anestesiante, que nos induz ao sono, um sono profundo, imobilizante, sem retorno, feito esquecimento ou talvez saudade.
 O sono da morte de quem não se deu conta ainda que
já não vive. Esperou tanto para viver que a paciencia da morte
se esgotou. Entrou em cena, desfez os cenarios, apagou as luzes
e se fez silencio. O dramalhão finalmente teve fim. 
                             Parece vivo, mas a morte já tomou conta. Faz 
tempo que virou defunto, apesar de ainda estar  caminhando por aí,
com discursos inflamados, defendendo pontos de vista, se 
achando injustiçado, ou se queixando de tudo, ou se achando
importante.


           O dia apenas começava, a nevoa se desfazendo, se
diluindo, enquanto o sol ainda era timido mas cheio de valentia. A caminhada infundia animo, disposição, contentamento, serenidade.
Os passarinhos cantavam cheios de vigor e entusiasmo. Os carros
passavam como quem tem pressa. Para onde iriam tão cedo, numa
manhã de domingo, com tanta urgencia ?


            Aquilo que os fazia correr com tanta ansia, não seria
talvez o falatorio da cabeça, que ainda não se transformou em
discurso publico, mas nem por isso percebido ? 




     
















             


        
       

                              


       

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