quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

PELO QUAL A VIDA VALE A PENA DE SER VIVIDA


         O menino apanhou. Não somente apanhou, apanhou muito. Fora de tal forma espancado e com tamanha crueldade, que não conseguiu manter-se de pé. Desancou. Caiu por terra, sem sentidos, em parte pela dor, igualmente pelo espanto por tamanha truculencia e covardia.

  Papai estava fora de si, visivelmente transtornado, não tanto, talvez, pela simples desobediencia do filho, que já havia sido advertido, tantas vezes, para  não afastar-se  longe de casa, mas, quem sabe, por frustrações pessoais,  tantas coisas que fogem do controle, criando dificuldades, amolações e sofrimento.

   E aquele fora um dia infeliz para o nosso pequeno. Um dia 
inesquecivel, que ficaria registrado, indelevel, eternizado, não apenas na memoria, como imagem estratificada em forma de lembrança, mas tambem a nivel corporal, em forma de dor, que se converte em couraça muscular, verdadeiro escudo contra as
adversidades da vida.
                 Papai havia viajado,  voltaria apenas ao final do dia.
 No entanto, o plano falhara, e sua ausencia não estendeu-se pelo
tempo conforme havia sido previsto.

   Em consequencia disso, nosso pequeno aventureiro foi traido
pelas circunstancias, pelos imprevistos fatidicos e, quando deu por si, já era tarde, tarde demais, pois a armadilha transformara-o, implacavelmente, em vitima indefesa.

  O sonho havia sido acalentado por tanto tempo. Fantasiava, nos
seus momentos de devaneio, pescando no riacho que fluia
por entre a mata densa, vindo de longe, das montanhas sinistra
que se estendiam ao norte. A floresta era  distante de casa, onde sempre fora, de um modo taxativo, proibido aventurar-se. Lá, no entanto, a pesca haveria de ser emocionante, fantasiava ele, peixes sequer imaginados, enormes, estranhos, com formas e coloridos diferentes, num mundo antes nunca  visto,  desconhecido, e não menos ameaçador.  Emoções intensas para serem vividas, dentro de um universo ainda inexplorado.

   Papai voltaria tarde naquele dia. Estaria livre, por fim, para
sua grande aventura, investida juvenil por caminhos negados, passos limitados por normas severas, o que acabaria, no entanto, por transformar-se numa experiencia infeliz, verdadeiro ritual de passagem, tendo o sofrimento como o ilustre mestre do cerimonial.

 Saiu de casa cedinho com seu instrumental de pesca, e lançou-se, faceiro e radiante em sua proeza ousada, tanto tempo sonhada com tanta emoção, com a intensidade que somente um coração de criança é capaz.  

     Foi então que o inconcebivel e inimaginavel transformou-se em realidade de horrores, nunca imaginado em sua inocencia pueril.
Havia embrenhado-se pela mata a dentro, seguindo o curso do
riacho, como verdadeiro explorador de dominios perdidos no mundo da imaginação. Estava fascinado pelo ambiente estranho, pelo canto de passarinhos desconhecidos,
pela coloração mais escura da agua em função da pouca luminosidade, pelo silencio e uma estranha paz, com misto de 
sensação de temor. Não sentia-se seguro, mas a sensação era agradavel, algo nunca reconhecido antes.
                      É esse, porem, o mesmo sentimento, quando se vai além de certas fronteiras, cruzando limites, seguindo trajetos raramente trilhados. O caminho solitario é o caminho da ousadia, da aventura, da revelação de mundos notaveis contrastando com a mesmice maçante de todo dia, não obstante, tambem do risco, da incerteza e a sensação de vilnerabilidade.
 Acaso, não são aqueles que se atrevem, os abençoados, verdadeiros herois, exploradores do desconhecido, onde a liberdade interior é o trofeu supremo a ser conquistado ?

   Havia acabado de fisgar um peixe enorme, que lutara muito
para trazê-lo à margem. O momento foi de emoção e encantamento. Percebeu seu coração acelerar-se e a respiração tornar-se mais rapida. As imagens da sua fantasia fizeram-se
realidade, em forma de experiencia, que não seria mais esquecida
jamais.    
    
   Nesse exato instante um grito à distancia  desfez o extase e a atmosfera de fascinação.
Sentiu um liquido quente escorrer-lhe pernas abaixo, o
coração aos saltos, quase audivel à distancia, querendo saltar
 pela boca, a respiração retina e o estomago
embrulhado. Uma terrivel sensação de desconforto, de nausea, com ansia de vomito, tremor generalizado com fraqueza repentina e corpo amolecido.

    Reconheceu a voz do pai que o chamava, à distancia, estando à
sua procura. Momento que, face uma escolha, se lançaria num precipicio, ou, mesmo, no mais profundo dos infernos, ante a ameaça do sofrimento que  antevia como impossivel de
suportar. Pavor semelhante não sentiria mais em sua vida.  

   Saiu correndo em direção ao pai, como quem se dirige ao cadafalso. A cena era patetica. O pai batendo de tal forma no
infeliz, totalmente indefeso, sem possibilidade de reação, berrando por socorro,  por alguma forma de amparo,
suplicando piedade. 

   Gritou até perder a voz e as pernas. Não conseguia nem
mesmo arrastar-se, mesmo assim, a crueldade não cedeu ao clamor desesperado do guri. Por fim, estatelado no chão, demolido, já sem sentidos, vizinhos acudiram, mitigando o desatino daquele pai sanguinario, carregando o pequeno para casa.

   Ficou dias de cama para recompor-se, suavizar as dores, os
machucados e a humilhação. Odiou profundamente o pai, desejando-lhe a morte e toda forma de desgraceira enquanto
 tivesse vida. O pai perdeu o filho, enquanto o filho
tornou-se orfão. Momentos definitivos de vida impossiveis de
serem reparados. 

                Ouvia, nos seus delirios, enquanto se restabelecia, os gritos enraivecidos do papai, exigindo obediencia e respeito às suas  intransigentes determinações.

Não é essa a mesma voz ouvida por todos vida afora, do
"papai-cuidador-do rebanho humano", para evitarmos veredas e escolhas que nos levam a sermos a gente mesmo ? 
Nada é mais ameaçador para o bando que alguem desistir das
fileiras, não mais seguindo o passo compassado de todos,  não abrindo mão da sua liberdade e do seu poder pessoal.
A degradação humana passa sempre pela subserviencia ao sistema,
curvando-se atraves de comportamentos estupidos, que bestializam,
e massificam, coletivizando a singularidade individual.

    Afinal,  não é o cidadão perfeito aquele que segue à risca as
ideologias prescritas  pela estrutura estabelecida ?
A castração psicologica é a metodologia mais eficiente para manter
a humanidade inconsciente. E o interesse empenhado é que a pessoa não seja ela mesma. O rebanho não sente-se à vontade com quem perdeu o coletivo dentro de si. 

    Abdique de si, da sua autenticidade, que será reverenciado,
talvez até posto em pedestal, para que seja seguido e admirado, servindo como cidadão exemplar. E os coroinhas de vigilia baterão suas sinetas para que o povareu se aproxime, expressando seus respeitos e veneração .... ou, não seriam, talvez, condolencias  ? !

    Apesar de tudo, o espirito do moleque não rendeu-se à truculencia inclemente do pai. A rebeldia do espirito reverencia a integridade e a originalidade do individuo, jamais transformando-se
em enfileirado, batedor de continencias, em posição servil de 
capachismo, dissimulada bajulação, em troca de sentir-se acolhido e fazendo parte. 
Em todos os credos, sistemas e ideologias existem escoras de
toda forma, quando abre-se mão da autenticidade pessoal. Não é que eles sejam espertos, é a pessoa que perdeu a cautela.

            Deixamos de ser quem somos, no momento em que o coletivo dentro da gente torna-se manifesto, cristalizando-se.

    Quem não espantar-se com a inclemencia da oposição do mundo,
conseguirá afirmar-se. Manter-se-á ereto, jamais um corcunda de si proprio.  Não será escravizado. Descobrirá a alegria por reconhecer-se, sendo ele mesmo.
Sua vida será criativa. Florescerá e a fecundidade será sua força motriz.

P. S.  Nosso pequeno heroi não deixou de percorrer os
caminhos ao longo daquele riacho que levavam para aquela
mata, ao pé daquelas montanhas sinistras ao norte.
Quando papai viajava, lá esta ele novamente com seu arsenal de pesca, em busca de novas aventuras, descobrindo dentro de si mesmo, ao desafiar perigos e contingencias ameaçadoras,  o verdadeiro sentido de vida. Tornou-se astuto e percebeu que são os riscos que moldam o homem, pelo qual a vida vale a pena  ser vivida. 
   
  ( Esta historia me foi passada pela mãe do nosso valente moleque.
        Hoje, ela, em idade avançada, doente,em estado terminal. Entristecida,  profunda magoa de espirito por não ter conseguido fazer frente às loucuras do marido com relação ao filho, que em idade tão precoce experimentou as agruras da vida. Sinto por ele pelo que sofreu, diz ela, mas lhe tenho consideração incomparavel pelo ser humano que conseguiu transformar-se, não obstante o
meio precario em que viveu.
Com voz debilitada e lagrimas amargas,  diz que, assim mesmo, valeu a pena, não por si, claro, pois sua sujeição a destruiu, mas pelo menino maravilhoso que manteve-se integro e fiel aos impulsos
do seu espirito.
Sei que não posicionei-me como deveria ter feito, e  minha submissão deixou-me nesse estado patetico em que me encontro.
 ( é no palco do corpo onde são encenados, geralmente,nossos fracassos mais eloquentes.
Adoecemos pelas tristezas interiorizadas, nutridas com tanto sofrimento, resguardadas profundamente, cuja dor persiste, apesar dos fatos estarem distantes ). 
  
 Ele, um homem realizado, não pelo que acumulou, ou pelo prestigio das suas conquistas, mas, sobretudo, por não 
ter-se convertido num adulto estupido, mediocre, sem entusiasmo, com todos os tipos de ideologias idiotas, cheio de tolices.
  Tambem é pai de um filho maravilhoso, e, sempre que
 pode, ...  pescam juntos ! )

   [ O estrume, para quem estiver disposto, e não importar-se
com a fedentina,  pode, invariavelmente, converter-se
 em fertilizante. ]

     

    

  


   


   

  

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