quarta-feira, 6 de junho de 2012

O MILAGRE DO CÃO DO VIZINHO


      Esse relato me foi passado por uma pessoa, mulher de meia idade, que se encontra
atualmente afastada das suas funções  motivado por um acidente, tendo, em função disso, sua  perna esquerda imobilizada.
                    Passa seus dias entre leitura, sonecas e momentos de recolhimento interior onde repassa
sua vida como num invertario mental, analisando cada aspecto onde se percebe imobilizada, onde a coisa
não anda, onde, não apenas a perna, mas a vida tambem parece engessada.

      Se dá conta que está apenas repetindo os mesmos comportamentos de modo inconsequente e
deprimente, muitas e muitas vezes em quase todos os aspectos da sua vida.
   Não sabe como libertar-se de um casamento ruim, desvitalizado, tendo perdido há muito o
encanto e o envolvimento que um dia nortearam aquela relação. Vivem os dois sob o mesmo teto, se conhecem há tantos anos, compartilham de tantas coisas mas, percebe, com clareza  sofrida, o quanto são estranhos e a distancia imensuravel que os mantem isolados.

       Não sabe como tudo desandou, como o encontro se desfez, e os laços que um dia uniram
aos poucos foram afrouxando, cedendo, até finalmente se romperem. Aconteceu de repente, ou foi um
processo, como um  movimento que, uma vez iniciado, segue sua trajetoria de um modo inexoravel até
cumprir seus designios ?

      Verifica tambem o mesmo caos na insatisfação com sua atividade profissional. Cumpre suas funções como quem cumpre um dever. Sem satisfação, envolvimento ou perspectiva. Apenas uma rotina massante,
sem graça, perturbadora. Olha para o trabalho, ao qual retorna todos os dias, igual prisioneiro em liberdade
condicional : à noite retornará ao carcere na condição de liberdade privada.

     Com dificuldade financeira, filhos sempre doentes e o espelho a lhe mostrar os primeiros
sinais inconfundiveis do movimento do tempo que vai passando. O encanto de linhas suaves e traços
harmoniosos de há pouco, tal qual as cenas do ultimo ato, aos poucos as vozes silenciando , o palco sem
movimento, as luzes se apagando e a cortina lentamente baixando.

     Come, não porque tenha fome mas porque a alma está vazia. Busca no alimento a satisfação
impossivel e improvavel. É a fome que mais doi, a fome da falta de realização, a alegria de se sentir
produtivo, a sensação confortavel de fazer parte. E dentro do vazio da falta de existencia, a desesperança,
o desanimo e a grande solidão.
     Vive repetindo os mesmos padrões que já não reproduzem os resultados esperados. Se sente
aprisionada em contextos onde o resgate já lhe parece duvidoso.
   Num certo momento da nossa conversa, de cabeça baixa e com voz debil, me falou  :  "estou dançando a minha vida segundo os passos ditados pelos outros ". À seguir, ficou novamente  em silencio por um longo tempo, e, ainda de cabeça baixa chorou silenciosamente.
   O enfileirado apenas segue, e o seu passo não é o passo da sua alma, pois quem segue não tem passo, não tem rumo, nem compostura. Se transformou em coisa coletiva. A individualidade e a humanidade
interna é algo que ficou extraviado pelo caminho, por tantos caminhos andados simplesmente seguindo.
          "Será que é por isso que tive esse acidente ? Será que é por isso que minhas pernas não querem mais
me levar por caminhos sem graça e sem alegria ? Será que minhas pernas não querem mais dançar sob o ritmo do movimento lento e monotono da grande fila de todos os enfileirados ? "
   Falou isso em voz baixa, como quem fala consigo mesmo sem se dar conta que está falando. Voz de murmurio mas num tom de lamento.

   E, no fim da nossa longa conversa, mais feita de silencio que de palavras faladas, me relatou um fato verdadeiramente relevante. Todas as manhãs em que o sol se faz presente, senta no fundo do lote à sombra de um frondoso cinamomo. Lembra que nunca fez isso em toda sua vida. Nunca sentou sob o frondoso cinamomo para apreciar a beleza e o ar festivo das manhãs de sol. O outono carrega uma certa magia
da ultima estação  que se despede. Parece um tempo de nostalgia, de silencio, de recolhimeto. Nunca parou em outono nenhum da sua vida para uma pausa, para um olhar mais atento e se dar conta do fluxo e refluxo das coisas e a vida se fazendo nesse movimento sem fim. E enquanto sentia o cheiro agradavel
do ar da manhã, a algazarra vibrante dos pardais, de repente viu um cão, o cão no lote do vizinho. Como nunca se deu conta nem dos outonos, nunca havia tambem  se dado conta do cão do vizinho, que, sem duvida, sempre esteve aí, amarrado a uma pequena corrente, latindo e se agitando com grande violencia. Era um cão de porte avantajado, amarrado a uma corrente que lhe permitia pequena mobilidade. Havia um patio enorme, um grande espaço disponivel, mas ele estava aprisionado àquele espaço diminuto do tamanho daquela pequena corrente.
Às suas costas, a pequena casinha que o abrigava das noites frias, onde a corrente se prendia.
  Estava aprisionado à sua propria casa, às coisas de todos os dias, a uma rotina terrivel, olhando para o mundo, para mil possibilidades, impossibilitadas por aquela pequena corrente. Todos os dias iguais, restrito
àquele pequeno espaço e tanta energia disponivel , e tanta vontade de correr, brincar, pular, ser feliz.. Era ele tambem um ser enfileirado, acorrentado, triste, desesperado, tentando uma vida digna pela qual valesse a pena viver.
     
     E foi então que ela se reconheceu naquele animal. Começou então a observá-lo dia apos dia com
mais atenção. Sempre que sentava, nas manhãs de sol, sob o frondoso cinamomo, não trazia
mais seu livro, como fazia normalmente, mas observava o comportamento daquele ser angustiado, pois o que mais chamava particularmente a sua atenção, era sua agitação enfurecida, pulando e forçando sua coleira ,querendo, a  qualquer custo, se desvencilhar daquele objeto que o mantinha aprisionado.
                 
      E, me contou, entre lagrimas, que numa bela manhã o milagre aconteceu . De tanto que forçou, a
coleira o feriu de tal modo que se tornou impossivel mantê-lo aprisionado àquilo. O pescoço se havia ferido de lado a lado. E, desse modo, seu "bondoso" dono lhe deu a liberdade. Finalmente podia
correr pela extensão do patio, ir de um canto a outro, pular, exultar, cantar ( o animal quando feliz,
sua  felicidade se transforma em canto, uma dança em forma de celebração ).
     E mesmo com o pescoço ferido, enfaixado com um grande curativo, não havia duvida que era
uma criatura feliz. Ela reconheceu a felicidade, e pela primeira vez em sua vida soube o que era a
tão decantada felicidade. Aquele animal lhe mostrou a importancia de ser livre e os caminhos por
ele seguidos para alcançá-la. Preferiu a morte a permanecer acorrentado àquele pedaço de corrente,
àquele pequeno espaço de vida. Feriu-se, estropiou-se, mas a dor do ferimento não tem comparação
com a sensação de bem aventurança de se movimentar conforme sua vontade, de escolher atraves das
suas proprias escolhas, de se movimentar ao ritmo do pulsar do seu coração.
                          E, quando se aproximava da cerca que separava os dois patios, ela conseguia
perceber o brilho nos seus olhos, o brilho da vitoria, da satisfação, da redenção. Nunca havia percebido
tal brilho nos olhos de ninguem. O sequestro havia finalmente terminado e o resgate, não há palavra no mundo que possam expressar seu significado e conteudo. Livre do cativeiro. Livre para a vida.
                  Ela olhava para alguem que havia alcançado o que estava desesperamente buscando, e, mais,
assistiu a cores e em tela cheia o fato se realizando. Viu o milagre acontecer e se deu conta que
isso é possivel. Se aconteceu com  o cachorro do vizinho, porque não seria possivel acontecer com
ela enfim. O pesadelo da sua vida poderia tambem ter fim.
                   E, sentada sob o frondoso cinamomo dos fundos da sua casa, numa manhã de sol de outono, se perguntou, solenemente, se estava preparada para se libertar tambem de todas as amarras que a
prendiam a um espaço melancolico e deprimente de uma existencia sem vida, tristemente chamada
vida . Afinal, já estava ferida de igual modo seu amigo do outro lado da cerca. Ele buscou com unhas e dentes seu grande objetivo. Sentia-se ela preparada o suficiente para o grande pulo, o salto mortal para
dentro de uma outra realidade ? Muitas são as coleiras que nos acorrentam a alma a espaços diminutos,
sem atmosfera nem importancia.  Estaria preparada, verdadeiramente, para se desfazer das amarras
que reduzem sua vida a uma rotina feia, confinamento de todas as possibilidades ?
       Se questionou porque percebeu que, enquanto enfileirada, existe a facilidade e a conveniencia de
simplesmente seguir, sem questionar, sem se indispor, ou pensar por si proprio. Estaria preparada para
se assumir, compromissada com diretrizes internas, desvinculadas da massificação coletiva ?
 Estaria preparada para seguir seu caminho sem olhar para os lados, para o passo dos demais ?
   Estaria preparada, igual o magestoso e imponente cão do outro lado da cerca, para, a qualquer
custo, reivindicar seu espaço, seu mundo, sua vida ?  Sua felicidade ? Seu passo, livre de qualquer crença,
ou ingerencia de qualquer ordem ? Estaria, por fim, prepara para tal jornada ?
   
       Por fim me falou um tanto decepcionada, assim como quem vacila  :  não podia imaginar que fosse tão dificil e tão doído para que as mudanças em nossa vida pudessem acontecer. Para que a gente pudesse ter a
vida de volta. Para que a gente pudesse realmente viver.
 




         






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