quarta-feira, 13 de março de 2013

CREATININA VIRA REFRÃO DE CENA SURREAL



        Qual seria o termo exato, ou a expressão adequada que pudesse traduzir, ou dar ao menos uma ideia aproximada, que conseguisse descrever o episodio no qual vi-me envolvido, de um modo muito estranho e ao mesmo tempo de todo involuntario ?

Talvez a forma mais precisa e esclarecedora seja a da imagem que
vem à mente quando falamos de uma situação "insolita". O termo
é definido pelo moderno dicionario da lingua portuguesa como algo não habitual, algo estranho, que é contrario ao uso, às regras, aos habitos, algo extraordinario, incrivel.

Pois bem, foi exatamente assim que percebi-me naquele encontro maluco. Aquilo sugeria bem mais uma cena surreal do mundo onirico e fantasioso das imagens imprevisiveis dos sonhos, que um acontecimento provavel no mundo real das coisas de todos os dias.

Aquilo não poderia ser possivel ! Cena elaborada pela total irreverencia e ousadia, sem ser no entanto ofensiva, ou carregada pela depreciação maldosa - e à presença dos demais, à beira mar, numa linda manhã de verão.
Simplesmente, não havia condições racionais para que pudesse dar
credito ao que meus ouvidos escutavam. Tinha que haver algum engano. Ou, talvez, estivesse em algum transe hipnotico, à deriva da realidade, ou então, quem sabe, estivesse realmente num sonho, sem dar-me conta de estar alucinando. E, pior, a duvida persiste ainda até esse momento ! 

Era a caminhada matinal de todos os dias. O ceu estava   azul, totalmente azul como se fosse uma tela pintada dentro de uma tonalidade apenas. A luminosidade transferia um sentimento de bem estar e leveza de espirito, tão proprio desses dias em que a  natureza parece festiva,  um convite para um momento de celebração, de contentamento, como se não houvesse amanhã.
 ( não é nesses raros momento, que temos a ideia, ao menos vaga,
 o que seja liberdade e o verdadeira sentido da vida ? )

   A brisa suave tornava o calor, que já se fazia sentir naquele momento, muito agradavel. O mar estava calmo, e a agua morna, convidativa, para um mergulho estimulante. 

Estava totalmente envolvido pelo cenario deslumbrante das circunstancias, pela energia leve e acolhedora da situação, que, quando dei pela minha pessoa, inexplicavel e repentinamente, vi-me envolvido, como se estivesse num palco simulado, representando uma cena já anteriormente ensaiada, frente à frente com aquelas pessoas, surgidas de onde ?, como por encanto,  tomando-me o centro daquela exibição impossivel.

Bem mais que a surpresa e o espanto, o mais surpreendente foi a maneira como me vi dominado pelo falatorio, e a forma como representavam, cada qual, o seu personagem.
Sem querer, fui o protagonista da comica, divertida e inusitada encenação, apesar de representar o papel de coadjuvante, pois a função toda corria, quase de todo, por conta daqueles atores improvisados, excentricos mas, sem duvida, adoraveis.

 -   Olalá, vejam só o que temos aqui. Um moço elegante e cheio de cuidados, gritou, encantada, assim que deu por mim à sua frente.
Aproximou-se mais, chegando mais perto, como se quizesse examinar-me com mais cuidado. Olhou-me de cima abaixo, de relance, talvez apenas para confirmar sua impressão inicial, para concluir, por fim, o seu parecer. Afastou-se um pouco, rindo ruidosamente, sem importar-se com as demais pessoas ali
presentes. O espetaculo era dela e estava satisfeita com sua atuação. E anunciou então em alto e bom som : elegante mesmo,
com certeza! 
Parecia satisfeita, muito tranquila e sinceramente simpatica. Parecia 
não querer dar espetaculo, apesar de ter armado um verdadeiro circo, sem lona, mas com picadeiro, à ceu aberto.

( não consigo, por mais que tente relembrar dos fatos, encontrar alguma logica, algo que fosse dar sentido e coerencia para que tal encontro pudesse ter sido possivel; estando, alem disso, nesse momento, ainda cheio de duvidas quanto ter
 realmente acontecido, pelo inusitado e impensavel da situação ).

 Era uma mulher volumosa, rechonchuda, de porte
realmente notavel em função da sua destacada obesidade. Ao falar ou rir, seu corpo balançava, ondulante, como se fosse espalhar-se em função da sua consistencia pastosa e flacidez geral. Parecia não haver solidez ou segurança na sua estrutura movediça e fluida. E aquilo bem que poderia desmanchar a qualquer movimento mais brusco ou intenso.

Grande dificuldade para mover-se, passo curto e lento, cadenciado, entretanto agil nas apreciações e julgamentos, que de imediato transformava-se em em loquacidade ruidosa e tiradas espirituosas. Seu rosto irradiava jovialidade e descontração, marca tão peculiar das pessoas avantajadas, que comunicam auto-suficiencia e genuina animação. Parecia feliz, em paz consigo mesma, como quem não necessita de nada para sentir-se bem. Este momento lhe parecia suficiente, transformando-o em seu total beneficio.
            Percebi, nesse instante, que não estava só. Enquanto
afastava-se uns passos, dirigiu-se para onde estavam mais duas pessoas, de porte semelhante, igualmente ondulantes, devidamente espaçosas, flutuando em meio a tanta gordura. Parou a meio caminho dos outros ( uma mulher e um 
jovem ) e anunciou, gargalhando : Mana Gorda, o moço é elegante.
( acentuou,  esticando o "é" para dar enfase ao "elegante" ).  Por fim, rematou : com certeza cuida bem da sua creatinina.

Nesse instante, em que pronunciou a palavra creatinina, presenciei
o que jamais imaginara fosse possivel presenciar.
A Mana Gorda e seu filho Zaka ( imaginei-o filho dela, pois se pareciam ),  apoderaram-se dos seus tambores e a Gorda
( Catalina ) com seu pandeiro, e deram inicio a um alvoroço inconcebivel, em função das circunstancias. A sonoridade tinha ares de espetaculo. Ritmado, alegre, na cadencia da batida atraente dos bumbos, onde o refrão da cantoria era a palavra creatinina, com destaque e enfase à silaba "ni".
No refrão havia harmonia. Era melodioso. Só tinha alguns compassos que eram repetidos sem cessar.
Repetiam a palavra, enquanto batiam os tambores e o pandeiro era
chocalhado. A sonorização era contagiante, mais ainda pela 
descontração e espontaneidade do trio repolhudo. Suas bochechas  balançavam ao ritmo festivo e fascinante do refrão "creati NI na", repetido em cadencia, o que produzia mais animação e entusiasmo. A ondulação de seus corpos tambem parecia emitir sonoridade, tal  a graça do ondulado, das bainhas de gordura chacoalhando
por todos os lados.
Espetaculo inarravel, insolito e de todo inexplicavel.

Aos poucos, a turma, em volta, entrou no ar festivo e animado, acompanhando a batucada alegre, sob o compasso da banda improvisada. 
Quando a batucada serenava, Catalina, a Gorda,  dava o tom do enredo, com seu palavreado eloquente, animada, e ao mesmo tempo provocativa.
Sua disposição evocava alegria. Era divertida, irradiando simpatia.

" - Moço, aproveite a vida ! Menos sacrificios ! Porque cuidar-se
tanto ? Morre do mesmo jeito. Tambem acha que o gordo morre antes ?  Respondeu por mim :  "não sei se é verdade, mas com toda certeza vive melhor, sem tanto suplicio e tanta renuncia".

Falava sem parar, como se fosse discurso preparado. "Voce se cuida para ser feliz. Nós somos felizes sem nos cuidarmos tanto, ou privação de tanta coisa. Não quer que o colesterol suba, que a barriguinha apareça, ou que o peso dispare. Já se deu conta de quanta coisa deixa de lado em nome do deprimente lugar-comum que chama vida saudavel ? Nós somos alegres, brincalhões, divertidos, não vê ? Veja o Zaka com sua enormidade. Não está de bem com a vida ? Acha que seria mais animado e feliz com tantos quilinhos a menos ? Acha que se importa com seus excessivos pesos alem da medida ?
Não temos medo de sermos felizes, apesar de não jogarmos conforme as regras. Nem por isso nos sentimos menos, nem tampouco carregamos culpa pelo que somos. Voce, ao contrario, figura elegante de semblante triste, apesar de bem fininho, parece amargurado. Não parece ser contraditorio ? Busca o alinho da forma, mas por dentro parece descuidado ".

Não sabia o que responder e simplesmente ri. Ri em função do nervoso e pela falta de saida, e a cabeça não cooperando em absoluto para que pudesse emitir qualquer comentario que pudesse  aliviar o desconforto e o constrangimento no qual estava envolto.  Ao mesmo tempo, achei lindo seu toque de ironia, satisfação e franqueza.

A apologia ao excesso, descontrole e insensatez, produziu uma sensação de aperto no estomago, e uma especie de agitação na cabeça. Meus pensamentos pareciam distorcidos, desconexos, como se meu corpo estivesse aí, mas vivendo, a nivel de racionalidade, uma outra realidade. 
Uma janela começou a abrir-se lentamente, por onde era possivel
divisar paisagens até então não contempladas. 
Geralmente olhamos para as coisas porque estamos acostumados a olhar para elas como sempre fazemos. Olhamos para elas, talvez apenas para certificar-se de que há alguma coisa ali. Não haveria
mais, entretanto, para ser visto alem daquilo que sempre vemos, ou
 acreditamos ?  E mais, porque supor que o ponto de vista pessoal
é a unica visão possivel ?

Estava confuso, perplexo e sem ação.
Percebi minha ansiedade. Estava como que sob o efeito de um encantamento, pois perdi a capacidade de reagir, ou defender-me. Aquilo era de todo incompreensivel. A realidade deles, entretanto, condizia com que La Gorda proclamava. Para dizer pouco, eram, sem duvida, pessoas alegres, agradaveis, comprometidas com a satisfação e o prazer. Vi neles a felicidade inocente dos que  necessitam de nada, ou de muito pouco, para vibrarem satisfeitos
e serenamente gratos com a vida. Representavam a personificação  da verdadeira felicidade, satisfação e abundancia. Sem duvida, aquilo encheu-me de emoção e ternura. Amei sua maneira de serem alegres, soltos e verdadeiros.

  - " O seu colesterol normal e alguns quilinhos a menos, ajudará, por ventura, as pessoas tornarem-se mais alegres, tranquilas, pessoas melhores ?  Já que se cuida tanto, moço elegante de figura triste, não percebe que não está mais animado, leve e fluido, apesar da aparencia apresentavel, devido aos tantos cuidados ?  
Pode ser leve e fluido por fora.  Por dentro é gordo e dasajeitado,
 mais que a gente é por fora, isso, exatamente, que rejeitam na
gente, na gente gorda. Somos discriminados e nos subestimam porque não conseguem compreender que, apesar de tanto excesso e aparente negligencia, ainda assim somos o que não conseguem com seu apuro e tantos cuidados. Será que não somos o que rejeitam em si mesmos, visto atraves de nós ? O rejeitado em si sempre perturba quando visto do lado de fora. Não é assim que falam os
entendidos no assunto ? Voces se cuidam por fora como simples disfarce pelo desarrumado por dentro. Talvez esteja exagerando. Se for o caso, mil perdões ". 

Mesmo assim deu continuidade à sua argumentação.
 - " Dizem que necessitamos de ajuda, que  nossa condição é doentia.  Quem está, no entanto, mais necessitado de ajuda ? E anunciou em tom estrepitoso : nós somos o paradoxo de tudo que parece correto e incontestavel, mas não é."
 E ria-se com satisfação incontida, gestos soltos, vibrantes, balançando ancas, pança e tudo o mais, no seu mar de gordura animada.

Seu senso teatral, seu humor e sua postura gentil, passava-me a estranha sensação de tratar-se de uma pessoa leve, suave e afavel, apesar do seu comunicado impactante e irreverente. Não pareceu-me, contudo, arrogante, insolente, ou com ares de cinismo. Representava seu papel com elegancia, desenvoltura e leveza. Estava feliz.
 Não era a mesma janela pela qual eu olhava a vida. Estava  descrevendo-me as paisagens vistas atraves da sua janela. A forma pela qual vivia a sua vida.
 E eu amei, com reverencia, aquela gorducha !

 -  "Tambem tenho problemas, mas não do mesmo jeito que voce. 
Superei expectativas, e isso me aliviou. Não espero nada. Não vivo pelo amanhã.
É uma pena, pois não consigo fazer todas as coisas que gostaria, mas isso não é um problema, é só uma pena. Não me lamento, nem me queixo. Nada me choca, nem me frustra. 
Nós gordos somos, mais ou menos, como o feio. O feio está conformado. Afinal, é feio, e não irá perder tempo nem energia com sua feiura. Não sofre pela sua figura estranha. Está satisfeito consigo mesmo, vive a vida e o corpo que  papai do ceu lhe deu, sem conflitos, sem carencias, sem queixar-se, de bom humor, e sem necessidade de elogios ou aceitação, como forma de satisfação pessoal. Ele se basta. Por isso é feliz.

 A beleza é incompleta, não percebe?, pois tem de ser aperfeiçoada a cada momento, sempre retocada, corrigida, ajeitada. É por isso
que o bonito, no mais das vezes, é feio, é exigente e carregado de azedume. Não tem mais que sua beleza vazia, beleza sem sentido, nem valor. Não te parece que 
lembra os cuidados dos que buscam a forma perfeita, no entanto desajeitados e feios pelo lado de dentro ? " 

Seu discurso era dado pela eloquencia de quem transmite 
aquilo que vive, tangido pela experiencia pessoal, e não por ponderações filosoficas sem sentido, teorizações futeis  de um conhecimento de segunda mão simplesmente por ouvir dizer. 

 "Um corpo gorducho é um corpo alegre, não reprimido, nem forçado a ter que acomodar-se a algum tipo de modelo, padrão ou esquema. Se olhar com atenção verá que existe na gente uma beleza especial que não encontrará na beleza que se esboça atraves do sacrificio da privação. Não é uma beleza natural. É forçada. Não é espontanea,
tampouco verdadeira. Geralmente nesse tipo de beleza há sempre
algo de mentiroso".

Lá estava eu, apatetado, rodeado por todos que se encontravam nas
proximidades, sem ação, simplesmente incredulo, impossivel aquilo tudo estar acontecendo, numa linda manhã de sol, à beira mar, sob um ceu radiante, como se fosse um dia de festa.
Sem duvida, Catalina, a Gorda, mostrou-me o outro lado da cerca, cenarios até então estranhos para mim. E inaceitaveis.

Voltou novamente a postar-se à minha frente, examinou-me como dar  tempo ao que iria dizer a seguir, com ar de um ator canastrão que exagera o seu desempenho. Piscou o olho, ergueu as sobrancelhas, balançou seu corpo imenso como se quisesse dar realce ao seu comentario.

- "Quer viver mais, por isso se cuida tanto, moço triste, de aspecto elegante. Mas posso dizer que serão apenas mais anos de mortificação e amargura.  Deixa de viver tanta coisa, de experimentar diferenças por causa de tantos senãos. Será mais feliz em função de tudo isso ?"

-  " Quer uma cervejinha ? um pastel ?"
  Abriu um imenso isopor de onde retirou uma cerveja e um imenso pastel engordurado. Dobrou-se de tanto rir e prosseguiu : "em nome da elegancia e da perfeição, castiga o corpo para sentir-se bem. Deixa de lado tanta coisa boa que gostaria de fazer, ou experimentar, mas tem a balança que persegue, pondo culpa, ou o colesterol que assusta.  O que se  leva da vida ? Não leva consigo seu colesterol comportado, nem tampouco leva seu corpo enxuto, ou sua barriguinha afilada. Levamos dessa vida não mais que a alegria que conseguimos viver, 
ou a satisfação que alcançamos sentir. Mais nada ! Acredite !
Os elegantes vivem em função de uma imagem de beleza, que os deixa sem graça e eternamente insatisfeitos. Lá em casa não existe isso de mau humor ".
E gritou bem alto  - "Não é mesmo Mana e Zaka ? "
 Ao que os dois responderam em unissono : completamente.
E por causa do quê, replicava Catalina ?  ( parecendo jogral de
 colegio ) Por causa da creatinina, com certeza - veio a resposta dos dois, em forma de gargalhada ruidosa.
E ao som da palavra creatinina, os tambores rufavam novamente e o pandeiro dançava nas mão gordas e fofas da gorducha Catalina. A animação estava à solta, e o refrão - creati NI na  se fazia ouvir à distancia. A praia toda cantava e dançava como se  estivessem todos possuidos ou hipnotizados pelo feitiço daquela gente maravilhosa. Estavam felizes sob
o batuque e a cantoria dessas figuras desajeitadas, mas sincera e profundamente amaveis, encenando o ritual da verdadeira alegria, do jubilo e da bem-aventurança, baixando, de certa forma, o ceu para a terra, confirmando que a felicidade existe.
Aquilo parecia-me a personificação do impossivel tornado real, da loucura transformada em exultação. Não poderia ser de outra
forma. Eu devia estar num sonho ! Com certeza !

Sai de fininho do meio da confusão formada e segui, em estado
hipnotico, como mentalmente embriagado, minha caminhada matinal.
Ainda ecoava em minha cabeça a voz vibrante da rechonchuda Catalina: "se não fosse por nós, gente gorda, o mundo seria ainda mais triste e deprimente. Somos os profetas da alegria e da descontração. Mesmo assim nos reprimem, condenam e discriminam. Mesmo assim somos mal vistos. Se trocasse  meu "corpinho" pela sua elegancia, que seria de mim ? Ficaria da mesma forma, assim como voce. Elegante mas de aspecto triste. Uma figura afetada, artificial, sem graça.  Mas deixa estar ! Não quer uma cervejinha ?..." Deu-me um tapinha
de leve no ombro e calou-se.

 Ao longe ainda ouvia o rufar dos tambores, o som dos tamborins e pandeiros, e o olé feliz pela
faceirice da abençoada C R E A T I N I N A....









    









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