sábado, 23 de março de 2013

O GAIATO E AS SENHORAS GORDAS


             Aprendemos a ver o mundo atraves de uma interpretação. 
Interpretamos, ou melhor, compreendemos e julgamos o que vemos em função de como fomos treinados para ver. Olhamos para as coisas tendo um filtro, como oculos, diante de nossos olhos, onde a percepção é filtrada, e, em consequencia, as imagens percebidas, refletindo a condição da qualidade do filtro.

Nos acostumamos a ver da forma como vemos. E nos incapacitamos de dar credito que outras paisagens existam, capazes de passar diante nossas janelas, alem daquelas a que nos acostumamos observar. Concebemos o mundo dentro da perspectiva do discernimento limitado do nosso ponto de vista pessoal. E tudo quanto não se ajustar a essa prerrogativa, será prontamente contestado e, da mesma forma, rejeitado, por confrontar as premissas dentro das quais percebemos e julgamos o mundo. 

Nascem assim a critica, a intolencia e a forma preconceituosa de
olhar para o mundo. Nascem as diferenças, as divisões, e, como corolario, as perseguições, a intolencia e a violencia. 
"Quem não pensa como penso, é contra, é inimigo, tendo,
portanto, que ser eliminado". Não é esse o aforisma que determina a ordem (desordem) da convivencia (desconvivencia) humana, 
seja a nivel pessoal, ou de grupo, clãs, ou mesmo nações ?

Quando as diferenças da diversidade não forem mais fonte de
perturbação do espirito, apesar de ainda permanecerem aí, não será mais a vida como sempre foi, pois terá alcançado um nivel de qualificação inimaginavel, quando comparada dentro da perspectiva
das limitações do ponto de vista pessoal.

Nossos olhos não estão livres ou desimpedidos para olhar cenarios
que não estejam à vista e do conhecimento do nosso ponto de observação. Panoramas conhecidos relacionam-se com segurança e proteção. Por isso apegamo-nos às mesmices do que nos é familiar, mapas, cujos caminhos se tornaram habituais. 
Apesar de sempre olharmos pela mesma fresta minuscula,  contemplando o mesmo mundinho insosso, feito de tedio, 
monotonia, cansativo, é assim, porem, que nos viciamos a olhar, e,
de certa forma, tal estrategia acaba tornando-se apropriada.

Sentimo-nos seguros tal qual o ratinho dentro da sua toca de proteção.
Não abrimos mão da nossa noção de realidade, do espaço diminuto onde nos escondemos, das nossas certezas vinculadas a crenças arcaicas, há muito já superadas. A vida será então vivida como consequencia dessas concepções restritivas, confusas e limitantes. 

A medida e a qualidade da vivencia que cada qual é capaz de viver, está na dependencia da quantidade e amplitude das aberturas atraves das quais olha-se para o  mundo. O limite não é dado pela paisagem, mas pelo limite do campo de visão. Sem antolhos o
mundo torna-se mais amplo e deslumbrante.

Dessa forma, as coisas não mudam, permanecem sempre as mesmas, assim como são. Quando mudamos, no entanto, a disposição do olhar, as veremos de uma forma diversa, pois a modificação interna determina sempre uma mudança de perspectiva externa.

 Terá essa noção quando ler aquele livro novamente que tanto gostou. Irá assimilar conteudos dos quais não deu-se conta da primeira vez que o leu. O livro não mudou. O conteudo permanece
o mesmo. Quando mudamos, no entanto, as coisas parecem mudar junto. Mas, as coisas não mudam. O que muda, é a nossa forma  de olhar. A nossa modificação interna traz consigo um mundo novo, um mundo que, entretanto, sempre esteve aí. Não percebido.
A realidade externa concilia-se sempre com padrões internos. O que vemos fora, não é outra coisa que a projeção dos conceitos
elaborados internamente, atraves dos quais concebemos a vida. 
Assim, aquilo que é, deixa de ser o que é para adequar-se àquilo
que achamos deveria ser. Aquilo que vemos, afinal,
 o que é ? 

 Aproximano-nos cada vez mais da realidade dos fatos, à medida que formos capazes de nos livrarmos dos filtros das crenças e convicções atraves das quais normalmente julgamos o mundo.
....................xxx..........xxx.......

Nesse momento, gostaria de elucidar, com um fato vivencial, o assunto aqui elaborado. O relato é surpreendente pela violencia psicologica que transmite, pelo atrevimento, petulancia e malcriação, sem deixar de refletir, contudo, a motivação basica  (assunto dessa pauta)  que deu origem ao fato trapalhão. 

Estava a poucos passos de distancia das duas senhoras que andavam de braço dado, apoiando-se uma na outra com o peso de seus corpos, como se escorando para manterem-se em equilibrio.
Era ainda cedinho, e o calor a essa hora não se fazia sentir ainda.
Pela luminosidade do momento, o dia prometia ser de calor intenso.
Não havia muita gente à beira mar. Poucos guarda-sois abertos.Os
pescadores, esses sim, já estavam na sua lida matutina. E alguns
caminhantes aproveitando o momento da frescura da manhã.

As mulheres, de meia estatura, de meia idade, eram gordas, de obesidade acentuada. Não havia nelas a leveza e graça caracteristica de certas pessoas corpulentas.
Expressão dolorosa no rosto, como se aquela caminhada fosse 
coisa alem de suas possibilidades, e parecia estarem ali por
alguma obrigação, seguindo, quem sabe, alguma recomendação
 profissional.
Elas não tinham idade tão avançada, nem seus
corpos tão fragilizados para parecerem tão decrepitas e arruinadas.

Tudo nelas era triste. Seu andar arrastado, a falta de energia,
o cheiro, a postura, a apatia.
 Será que alguem já nasce com tal proposito ou sina, ou a pessoa transforma-se nisso ao longo da jornada ? Seria, porventura, vitima de forças invenciveis, indefesa frente aos ataques impiedosos da vida ? Quando a disposição interna 
fragiliza, o corpo sempre esmorece. Frente a um estado de animo esbagaçado, a debilidade manifesta no que existe de mais deprimente no ser humano. De igual forma, a graciosidade do
espirito, seja na obesidade ou num corpo alinhado, o requinte e
a leveza evidenciam-se à primeira vista. São chamativos. E contagiam.

A elegancia não é, necessariamente, uma singularidade corporal, ou atributo de medidas externas, mas, tão somente, um efeito da suavidade do espirito.

Enquanto seguia em frente, à pouca distancia das duas, perdido em
devaneios mentais, infuenciado pela observação dos fatos, surge do nada, subitamente, um gaiato, que passa apressado, postando-se à frente das senhoras, dando inicio a um discurso patetico, ultrajante,  inconcebivel, em função do tom e do conteudo do desairoso linguajar, motivado, tão somente, pelo porte fisico delas. 

 - " Isso é vergonhoso !" Vociferou, descontrolado, tomado pelo desprezo. E continuou, possuido pela indignação.           
 - " Verdadeira poluição para os olhos. Como não podem dar-se conta disso ? Atentado 
contra o bem estar e  bom humor das pessoas. Como pode isso ser permitido?  Perturba as pessoas olhar para tanto relaxamento e feiura. Deveriam ficar em casa, escondidas, e não aparecer em publico, emporcalhando o mundo com tanto mau gosto".

 Parou de falar, como se quisesse avaliar o efeito das suas palavras. Por fim, lançou-lhes um ultimo olhar de desdem, tomado ainda pela soberba, e saiu correndo da mesma forma como havia se apresentado. 

Uau !.... Meu Deus ! Meneei a cabeça de um lado para o outro para apenas certificar-me do que acabara de ouvir.  Isso que ouvi, foi mesmo isso que ouvi ?
Aconteceu de uma forma tão surpreendente e fora de qualquer cabimento, que senti um frio no estomago. A boca entreabriu-se,
 o queixo caiu. Não conseguia respirar.
Apesar de estar aí como simples testemunha casual, mesmo assim, o impacto não foi menos que simplesmente chocante. Era quase como se aquilo estivesse acontecendo comigo.

 Olhei para elas. Benzeram-se simultaneamente, 
enquanto uma delas desmoronou, indo para o solo. Estava inconsciente. Respirava com dificuldade, sacudindo o corpo como se estivesse em crise
convulsiva.
 A outra gritava improperios, em forma de defesa
contra o desastrado agressor, que, já distante, não deu a minima aos
protestos da enfurecida senhora .

Sai correndo, assim que me refiz do impacto, ajoelhando-me ao lado da desmaiada, pedindo-lhe,
aos gritos, que respirasse fundo. Dei-lhe tapinhas de leve no
rosto, tentando reanimar e trazê-la de volta para a realidade. 

Respire fundo, minha senhora. Respire. Respire. Era a unica
coisa que ocorreu-me fazer naquele momento espantoso
e inconcebivel. Enquanto isso, a outra continuava na sua furia,
aos berros, tentando, talvez, chamar atenção de algum passante, que pudesse fazer justiça contra o desbocado infeliz.

A desfalecida foi retornando às suas faculdades normais, à medida
que a estimulava a respirar cada vez mais. Apoiei a mão direita embaixo de sua cabeça, como um pequeno travesseiro, explicando-lhe que tudo estava bem. Quis saber o que tinha acontecido (mana,
que foi que aconteceu ? )
Pedi que se acalmasse, e tentei erguer sua cabeça para a posição sentada.
Minha senhora, vamos sentar ? Irá sentir-se melhor.
Nesse instante olhou-me com indignação, falando com azedume.
 - " Sentar ?  Como vou sentar se não há cadeira alguma para
sentar ?  Vá tratar de achar uma cadeira
 onde possa sentar !"

Achei que não tivesse ouvido, novamente, mais uma vez, o que acabara de ouvr, mas ela reforçou, de
imediato, sua petulante exigencia : rapido, rapido, rapaz, uma cadeira !

Levantei-me, lentamente. Nossos olhares encontraram-se. Olhar estanho, talvez sem sentido, de descredito, ou de assombro. Fiz sinal com a cabeça, e ergui-me lentamente, pois as pernas estavam dormentes, doloridas, devido a posição incomoda em que permaneci o tempo todo tentando socorrê-la. 
Por fim, já de pé, espreguiçei-me, colocando as mãos atras da cabeça, e segui em frente, retomando, sem pressa alguma, a caminhada matinal,  tão estranha e absurdamente interrompida.
 Ouvi o canto de uma gaivota e o ruido das ondas morrendo na areia fofa. A luminosidade era nesse momento já mais intensa. O dia, sem duvida, estava maravilhoso.

Bem ao longe, quase a perder de vista, o gaiato tambem
prosseguia em sua jornada, como numa cruzada implacavel,  à procura, quem sabe, de outras circunstancias, onde pudesse fazer justiça aos seus pontos de vista pessoais, expondo sua plataforma de como o mundo, as
pessoas e tudo o mais deveria ser. 

PS   A cadeira da senhora ?  Pois é...  sem maldade alguma, se quiser, leva uma para ela. Talvez esteja ainda esperando !
Eu, da minha parte, acabei esquecendo-me de todo...




  




    




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