quinta-feira, 9 de maio de 2013

OUVIMOS DEUS QUANDO OLHAMOS SEM O PENSAMENTO


As manhãs de caminhada são sempre excelente exercicio para a
pratica da observação cuidadosa. 
Acalmando o alvoroço habitual da mente, o olhar aguça-se e, de
forma singular, a percepção se aprimora.
 A inquietação na cabeça, que não cessa um instante sequer, impõe-nos uma visão à margem da realidade. Seu estimulo é de tal forma envolvente e intenso, que, atraves de manobras astutas, qual mestre ilucionista, mantem controle absoluto, impondo uma
visão falsa, determinada pelo enredo mental involuntario, como simples reflexo condicionado. Isto é, pensamento automatico. Pensamento sem dono, que se faz por si proprio, à margem
da nossa vontade.
A visão do que vemos, não é definida, portanto, pela imagem captada visualmente, mas pelo conceito emitido, em forma de pensamento, sobre aquilo.

É como assistirmos a um filme, e aquilo que vemos, não serem
 as imagens projetadas na tela, mas as imagens mentais imaginadas,
a partir daquelas, e projetadas na tela da nossa consciencia.
Vemos o que pensamos, enquanto olhamos. Vemos a ideia que
fazemos daquilo. A visão não tem soberania, no tempo em que 
estiver sob o efeito do falatorio interno. Enxergamos por dedução,
por abstração, e não como um fato real em si.
 Sobrepõe-se à imagem real - aquilo que está aí -  a imagem sugerida pelo dialogo
 mental, e essa resultante será percebida como real.
Transformamos, dessa forma, o mundo real - atraves da
argumentação da cabeça - num mundo de quimeras e ilusões
  fantasiosas.

Até podemos olhar para as coisas, enquanto passamos, no entanto,
não vemos a coisa em si, à medida que pensamos sobre aquilo. A
percepção fica distorcida atraves do filtro da manipulação mental.
O olho capta, mas a mente reinterpreta a visão, dando-lhe um
sentido que se adapta ao seu modelo de realidade, de como imagina
que as coisas deveriam ser.

E foi numa dessas que a coisa me pegou. 
O pit bull branco era compania constante nas minhas manhãs de
caminhada. Via-o por aí, correndo por todos os lados, 
 atraido pelas lixeiras, em busca do seu desjejum.
Encontrava uma coisinha ali, outra acolá, e seguia em frente, com
a cauda sempre empinada, orelinhas atentas, sem importar-se, aparentemente, com o mundo ao seu redor. Repetia, dessa maneira, seu ritual de todas as manhãs, parecendo feliz, alheio à sua situação  desfavorecida.

Passou por mim correndo, como
de costume, mas algo estranho, nesse momento, tomou conta do meu ser.
 Pela primeira vez eu o vi verdadeiramente. E uma emoção
comovente tomou conta de mim.
Não o vi atraves de uma ideia, como normalmente fazemos, quando
olhamos para qualquer coisa. Já temos uma ideia pré-formada
do mundo que nos rodeia. Ao olharmos para uma flor, imediatamente a flor é transformada naquilo que conhecemos
sobre flores. Se for uma rosa, a flor será transformada em
 rosa-ideia e nada mais.
 Com isso perde-se a essencia. Vemos o nome daquilo que
é visto, pois a imagem real ficou retida no filtro das coisas conhecidas.
Ficou na mente. Vemos o pensamento da coisa e não a coisa em si,
abstraida de qualquer comentario da cabeça.
Vemos uma ideia. A visão ficou retida nas malhas do racional, não
transformando-se em sentimento. Não chegou ao coração.
Vemos, mas não sentimos.

Sempre nos viamos, todas as manhãs, como dois personagens 
estranhos, presentes no mesmo ambiente, seguindo os mesmos caminhos, mas diferentes nos seus propositos.
Eu, cuidando da minha creatinina, ele, do seu estomago reclamando
por algum alimento.

Quando passou por mim, olhou-me à maneira como os amigos,
quando se encontram, e tive a nitida sensação de
ter-me saudado com um gentil bom dia. Fez até leve 
reverencia com a cabeça, como quem levanta o chapeu em
sinal de saudação. Não usava chapeu, certamente, mas seu cumprimento deu-me a sensação de ter visto um chapeuzinho invisivel me saudando. Num impulso automatico, levei a mão ao meu boné,
e retribui-lhe o gesto cavalheiro, inclinando, da mesma forma, levemente a cabeça. 
Foi um instante de comovente ternura, encontro de dois corações, reverenciando a vida num encontro verdadeiro, naquilo que há
de mais sagrado na vida.

 Não seria o amor algo semelhante a isso ?
Faço ideia que sim, pois tive um profundo sentimento de respeito
e afeto por aquele bichinho encantador. Acho que sentiu o mesmo. Talvez nunca ninguem antes deve ter-lhe inclinado a cabeça em
sinal de saudação reverente, com um leve toque no boné.
Ficamos amigos. Amigos inesqueciveis. Amigos de coração.

 O que chamou-me a atenção, foi que a fome não impediu-o de ser fidalgo e demonstrar dignidade. Não lastimou-se da sorte, nem
mendigou piedade. Aceitou dignamenmte seu destino e estava fazendo o que tinha de ser feito dentro das suas circunstancia, naquele momento.

Não tinha aspecto de quem estivesse triste, ou inconformado
 com sua sina.
Ficou feliz ao me ver, pois reconheceu-me -  velho conhecido das manhãs de caminhada.
Será que imaginou, que eu estivesse tambem, como ele, procurando algo com que alimentar-me, e tenha sido por isso que desejou-me, tão gentilemente, na sua saudação reverente, que tivesse um dia de sorte ?

Fosse como fosse, sua energia tocou-me profundamente. Amei sua maneira de como conduzir a vida. Um serzinho valente, alegre,
de bom animo, apesar de abandonado à
sua propria sorte. A vida, contudo, não o havia abandonado.
Talvez tenha se dado conta disso, pois não entregou-se ao desanimo ou ao inconformismo sem esperança. 
  Talvez esteja aí o segredo da boa fortuna. O desanimo da alma cria a desventura e toda sorte de infortunios na vida. 

 Estava até gordinho, de porte elegante, altivo, gracioso,
 dando a entender que encontrava sempre, em todas as manhãs, nos lixões do mundo, algo com que saciar sua fome.

Trazia uma coleira amarrado ao pescoço, sinal que um dia já teve dono, alguem que se importasse, alguem
que lhe tivesse dado amor. Agora, porem, os tempos eram outros, e ao inves do amparo e cuidados de alguem, estava sendo guiado pelo
 instinto - outra forma de proteção e segurança, definida de forma natural, às espensas de forças superiores, proteção incondicional.
 E, pelo visto, até o momento, tudo estava bem.

Ainda o vi, quando dobrou a esquina, endereço talvez 
da proxima tentativa de encontrar algum alimento. 
Fiquei feliz com aquele encontro. A alma do bichinho fez
contato e despertou minha sensibilidade. Senti-me um pouco
mais humano por ter sentido amor verdadeiro por um
pit bull abandonado, nessa manhã de caminhada.
Emocionei-me, como há tempo não acontecia, com sua saudação
reverente, desejando-me sinceramente um dia feliz.
Senti que ele, da sua parte, tambem ficou tocado, talvez por
ter sido, pela primeira vez, que alguem o percebesse de mente
vazia, sem julgamentos de valor, ou criticismos da racionalidade.

Ver, abstraido do dialogo confuso da cabeça, leva-nos a ver
com o coração. E quando o coração vê, compreendemos que
a vida é mais do que os olhos conseguem mostrar, e bem mais
do que as ideias nos fazem acreditar.

Ouvimos Deus quando olhamos sem o pensamento.



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